Certa noite, finda a dissertação que Alexandre consagrava
aos companheiros terrenos, meu orientador foi procurado por duas senhoras, que
foram conduzidas, em condições especialíssima, àquele curso adiantado de
esclarecimentos, porquanto eram criaturas que ainda se encontravam presas aos
veículos de carne e que procuravam o instrutor, temporariamente desligadas do
corpo, por influência do sono.
A mais velha evidentemente Espírito mais elevado, pelas
expressões de luz de que se via rodeado, parecia muito conhecida e estimada de
Alexandre, que a recebeu com indisfarçáveis demonstrações de carinho. A outra,
porém, envolvida num circulo escuro, trazia o semblante lacrimoso e angustiado.
- Ó meu amigo! – exclamou a entidade mais simpática,
dirigindo-se ao benévolo orientador, depois das primeiras saudações – trago-lhe
minha prima Éster, que perdeu o esposo em dolorosas circunstâncias.
E enquanto a senhora indicava enxugando os olhos, em silencia,
acabrunhadíssima, a outra continuava:
- Alexandre, conheço a elevação e a urgência de seus
serviços; entretanto, ouso pedir sua ajuda para os nossos pesares terrestres!
Se houver absurdo em nossa rogativa, desculpe-nos com o seu coração
clarividente e bondoso! Somos mulheres humanas! Perdoe-nos, pois, se batemos à
sua porta de benfeitor, para atender a problemas tristes!...
- Etelvina, minha amiga – falou o instrutor, com entonação
de ternura – em toda parte, a dor sincera é digna de amparo. Se há sofrimentos
na carne, existem eles também aqui, onde nos encontramos sem os despojos
grosseiros e, em todos os lugares, devemos estar prontos à cooperação legítima.
Diga, portanto, o que desejam e ponham-se à vontade!
Ambas as senhoras demonstraram-se aliviadas e passaram a
conversar calmamente. Etelvina, satisfeita, apresentou então a companheira que
começou a relatar seu doloroso romance. Casara-se, fazia doze anos, com o
segundo noivo que o destino lhe reservara, esclarecendo que o primeiro, ao qual
amara muito, suicidara-se em circunstâncias misteriosas. A princípio,
preocupara-se intensamente com a atitude de Noé, o noivo primeiro, bem-amado de
seu coração; todavia, o devotamento de Raul, o esposo que o Céu lhe enviara,
conseguira desfazer-lhe as mágoas do passado, edificando lhe a ventura conjugal,
com amoroso entendimento. Haviam recebido três filhinhos da Providência Divina
e viviam em harmonia completa. Raul conquanto melancólico era dedicado e fiel.
Quanta vez a desejar balsamizar lhe, em vão, as chagas recônditas! O
companheiro, todavia, nunca se lhe revelara plenamente! Apesar disso, a existência
corria-lhe venturosa e calma, no santuário da mútua compreensão. Não obstante,
porém, viverem para o desempenho das sagradas obrigações domésticas, apareceram
inimigos ocultos que lhes haviam subtraído a felicidade. Raul fora assassinado inexplicavelmente.
Amigos anônimos recolheram lhe o cadáver na via pública, trazendo-lhe a casa a
terrível surpresa. Tinha ele o coração varado por um tiro e revólver, que,
embora encontrado junto do corpo exangue, não lhe pertencia. Que mistério
envolveria o hediondo crime?
Diversos populares e policiais acreditavam tratar-se de
suicídio, tanto assim que todas as diligências da justiça criminal se encontravam
interrompidas; entretanto, em sua convicção de mulher, admitia o assassínio.
Que motivos conduziriam um homem probo e trabalhador ao suicídio sem causa?
Porque se mataria Raul, quando tudo lhes era favorável, relativamente ao
futuro? Inegavelmente, seus recursos financeiros não eram extensos, mas sabiam
equilibrar, com decência, a despesa doméstica e a receita comum. Não, não. O
companheiro, a seu parecer, teria partido da Crosta por imposição de tenebroso
crime. Mas, em sua generosidade feminina, Éster, em lágrimas, não desejava
positivar a culpabilidade de ninguém, não desejava vingar-se e, sim, acalmar o
coração em desalento. Seria possível, por intermédio do Alexandre, sonhar com o
companheiro, no sentido de obter-lhe as notícias diretas e fazer-lhe sentir o
carinhoso interesse do lar? Em vista dos filhos pequenos e de dois velhos tios
que estavam dependentes de sues préstimos, a angustiada viúva entrava-se em
péssimas condições financeiras, na viuvez inesperada; todavia, acrescentava em
pranto, estava disposta a trabalhar e consagrar-se aos filhinhos, recomeçando a
vida, mas, antes disso, desejava algum conforto para o coração, anelava
inteirar-se do ocorrido e conhecer a situação do esposo, para conformar-se.
E, no fim da longa e sentida exposição, rematava, lacrimosa,
dirigindo-se ao meu orientador:
- Por piedade, generoso amigo! Nada me podeis dizer? Que
terá sido feito de Raul? Quem o teria assassinado? E por quê?
A viúva sofredora parecia alucinada de dor e internava-se
através das mais descabidas indagações; Alexandre, porém, longe de se desgostar
com as perguntas intempestivas, assumira atitude paternal e, carinhosamente,
tomou as mãos da interlocutora, respondendo-lhe:
- Tenha calma e coragem, minha amiga! Neste momento, não é
fácil esclarecê-la. É imperioso sindicar, com cuidado, a fim de solucionar o
problema com o critério devido. Volte, pois, ao lar e descanse a mente oprimida...
Ansiedades existem que não se curam à força de raciocínios do mundo. É
indispensável conhecer o refúgio da oração, confiando-as ao Supremo Pai.
Ampare-se à fé sincera, confie na Providência e veremos o que é possível fazer
no setor da informação e do socorro fraterno. Examinaremos o assunto com
atenção!
Ambas as senhoras teceram ainda alguns comentários
dolorosos, em torno do acontecimento, e despediram-se, mais tarde, com palavras
de gratidão e conforto.
A sós comigo e sentindo, talvez, a minha necessidade de
preparação e conhecimento, o orientador explicou:
- Nossos amigos encarnados muitas vezes acreditam que somos
meros adivinhos e, pelo simples fato de nos conservarmos fora da carne, admitem
que já somos senhores de sublimes dons divinatórios, esquecidos de que o
esforço próprio, com o trabalho legítimo, é uma lei para todos os planos
evolutivos.
Mas, sorrindo paternalmente, acrescentou:
- Entretanto, é forçoso considerar que nós outros, quando na
Crosta, em face das mesmas circunstâncias, não precederíamos de outra forma.
NO dia imediato, porque podia eu dispor de mais tempo,
convidou-me Alexandre a acompanha-lo até à residência de Éster. Tomaria lar da
interessada como ponto de parida para as averiguações que desejava levar a
efeito.
- Como? – ponderei – Não seria mais prático invocar
diretamente o esposo desencarnado, através de nossos poderes mentais? Raul poderia
desse modo, ser ouvido se dificuldade, observando-se posteriormente o que se
poderia fazer em favor da viúva.
O instrutor, todavia, sem desprezar minha ideia, considerou:
- Sem dúvida, esse é o método mais fácil e, em muitos casos,
devemos mobilizar semelhantes recursos; entretanto, André, o serviço
intercessório, para ser completo, exige alguma coisa de nós mesmos. Concedendo
à nossa irmã Éster algo de nosso tempo e de nossas possibilidades, seremos
credores de mais justos conhecimentos, respeito à situação geral, enriquecendo,
simultaneamente, os nossos valores de cooperação. Quem dá o bem é o primeiro
beneficiado, quem acende uma luz é o que se ilumina em primeiro lugar.
Como quem não desejava dilatar a conversação, Alexandre
silenciou, pondo-nos ambos a caminho, compreendendo eu, mais uma vez, que, como
na Terra, o serviço de colaboração fraternal no plano dos Espíritos reclama
esforço, tolerância e diligência.
A casa da pobre viúva localizava-se em rua modesta e, embora
relativamente confortável, parecia habitada por muitas entidades de condição
inferior, o que observei sem dificuldade, pelo movimento de entradas e saídas,
antes mesmo de nossa penetração no ambiente doméstico. Entramos sem que os
desencarnados infelizes nos identificasse a presença em virtude de baixo padrão
vibratório que lhes caracterizavam as percepções. O quadro, porém, era doloroso
de ver-se.
A família, constituída da viúva, tr6es filhos e um casal de velhões,
permanecia à mesa de refeição, no almoço muito simples. Entretanto, um fato,
até então inédito para mim, feriu-me a observação: seis entidades envolvidas em
círculos escuros acompanhavam-nos ao repasto, como se estivessem tomando
alimentos por absorção.
- O meu Deus! – exclamei, aturdido, dirigindo-me ao
instrutor – será crível? Desencarnados à mesa?
Alexandre replicou tranquilo:
- Meu amigo, os quadros de viciação mental, ignorância e sofrimento
nos lares sem equilíbrio religioso, são muito grandes. Onde não existe
organização espiritual, não há defesas da paz de espírito. Isto é intuitivo
para todos os que estimem o reto pensamento.
Após ligeira pausa em que fixava, compadecido, a paisagem
interior, prosseguiu:
- Os que desencarnam em condições de excessivo apego aos que
deixaram na Crosta, neles encontrando as mesmas algemas, quase sempre se mantêm
ligados a casa, às situações domésticas aos fluidos vitais da família.
Alimentam-se com a parentela e dormem nos mesmos aposentos onde se desligaram
do corpo físico.
- Mas chegam a se alimentar, de fato, utilizando os mesmo
acepipes de outro tempo? – indaguei, espantado, ao ver a satisfação das
entidade congregadas ali, absorvendo gostosamente a emanações dos pratos
fumegantes.
Alexandre sorriu e acrescentou:
- Tanta admiração, somente por vê-los tomando alimentos
pelas narinas? E nós outros? Desconhece você, porventura, que o próprio homem
encarnado recebe mais de setenta por cento da alimentação comum através de
princípios atmosféricos, catados pelos condutos respiratórios? Você não ignora
também que as substâncias cozidas ao fogo sofrem profunda desintegração. Ora,
os nossos irmãos, viciados nas sensações fisiológicas, encontram nos elementos
desintegrados o mesmo sabor que experimentavam quando em uso do envoltório
carnal.
- No entanto – ponderei -, parece desagradável tomar
refeições, obrigando-nos à companhia inevitável de desconhecidos e, mormente desconhecidos
da espécie que temos sob os olhos.
- Mas você não pode esquecer – aduziu o orientador - que não
se trata de gente anônima. Estamos vendo familiares diversos, que os próprios
encarnados retêm com as suas pesadas vibrações de apego doentio.
Alexandre pensou um momento e continuo:
- Admitamos, contudo, a sua hipótese. Ainda que a mesa
doméstica estivesse rodeada de entidade indignas, estranhas aos laços consanguíneos,
resta a certeza de que as almas se reúnem obedecendo às tendências que lhes são
características e à circunstância de que cada Espírito tem as companhias que
prefere:
E, desejoso de fornecer bases sólidas ao meu aprendizado,
considerou:
- A mesa familiar é sempre um receptáculo de influenciações
de natureza invisível. Valendo-se dela, medite o homem no bem, e os
trabalhadores espirituais, nas vizinhanças do pensar, virão partilhar-lhe o
serviço no campo abençoado dos bons pensamentos; conserve-se a família me plano
superior; rendendo culto às experiências elevadas da vida, e os orientadores da
iluminação espiritual aproximar-se-ão, lançando no terreno da palestra
construtiva as sementes das ideias novas, que então se movimentam com a beleza
sublime da espontaneidade. Entretanto, pelos mesmos dispositivos da lei de
afinidade, a maledicência atrairá os caluniadores invisíveis e a ironia
buscará, sem dúvida, as entidade galhofeiras e sarcásticas, que inspirarão o
anedotário menos digno, deixando margem vastíssima à leviandade e à
perturbação.
Indicando o grupo à mesa, Alexandre acentuou:
- Aqui, os tristes inveterados atraem os familiares
desencarnados de análoga condição. E. O vampirismo recíproco. Ouça você o que falam.
Agucei meus ouvidos e, com efeito, observei que a
conversação era das mais lastimáveis:
- Nunca pensei que viria a sofrer tanto neste mundo! –
exclamava a velha tia de Éster, queixando-se amargamente. – Agostinho e eu trabalhamos
tanto na mocidade!... Agora, chegados à velhice, sem recursos para enfrentar a
vida, somos obrigados a sobrecarregar a pobre sobrinha viúva! Ó que doloroso
destino!...
E enquanto as lágrimas lhe corriam nas faces de cera, o
ancião fazia coro:
- É verdade! Para uma vida laboriosa e difícil, tão amargosa
compensação! Jamais esperei uma velhice tão escura!...
As entidades vestidas em túnicas de sombra, ao ouvirem
semelhantes declarações, pareciam também mais comovidas, abraçando-se aos
velhos com fervor. A viúva, todavia, embora tristonha, acrescentou, resignada:
- De fato, nossas provações têm sido cruéis; entretanto,
devemos confiar na bondade de Deus.
Alexandre fixou nela toda a sua atenção e notei que na alma
da viúva se fazia disposição singular. De olhos brilhantes, como se percebesse,
de muito longe, a nossa influenciação espiritual, recordou o sonho da noite, de
modo vago, acentuando:
- Graças a Providencia, amanheci hoje muito mais confortada.
Sonhei que a prima Etelvina me conduziu à presença de um mensageiro celestial
que me abençoou o coração, aliviando-me as pesadas dores destes últimos dias!
Ó, como me rejubilaria se pudesse reconstituir esse sonho de luz.
- Ora, mamãe, conte-nos! – exclamou a filhinha de sete anos presumíveis,
que até ali se mantivera em silencia:
- Minha filha, não se pode descrever as grandes sensações.
Não me lembro precisamente de tudo, mas recordo-me de que o emissário de Jesus
me ouviu com paciência e, em seguida, disse-me palavras de encorajamento e
amor. Longe de me repreender, acolheu-me, bondoso, e, revelando divina
tolerância, escutou minhas queixas até ao fim, qual médico abnegado.
Inegavelmente, levantei-me hoje com outro ânimo. Estejamos conformados, pois
Deus nos auxiliará. Logo que me refaça completamente, ganharei nosso pão com o
trabalho honesto. Tenhamos esperança e fé. Em face das afirmativas
encorajadoras de Éster, os meninos entreolharam-se, sorridentes, enquanto os
velhinhos calavam a amargura que lhes era própria.
Desejei fazer-me visível aos companheiros desencarnados, sem
luz, que se movimentavam no recinto, de maneira a palestrar com eles,
sondando-lhes as experiências, mas Alexandre dissuadiu-me:
- Seria perder tempo – disse -, e se você deseja
beneficiá-los, venha até aqui noutra oportunidade, porque as cristalizações
mentais de muitos anos não se desfazem com esclarecimentos verbais dum dia. No
momento, nosso objetivo é diverso. Precisamos obter informações sobre Raul.
Além disso, se nos valêssemos da hora, a fim de ouvir nossos irmãos
desencarnados, presentes, verificaríamos de pronto que eles poderiam apenas
relacionar dolorosas lamentações, sem proveito construtivo.
E revelando reduzido interesse pela conversação dos
encarnados, em vista do objetivo essencial do momento, considerou:
- Procuremos algum de nossos irmãos visitadores. Temos
necessidade de informes iniciais para dar uma feição imediata ao nosso trabalho
intercessório.
Porque Alexandre demandasse outros aposentos, deixei igualmente
a modesta sala de refeição, embora desejasse continuar observando. O instrutor,
porém, não tinha muito tempo para gastar.
Depois de rápidos minutos, fomos defrontados por uma
entidade de aspecto humilde, mas muito digno, a quem Alexandre se dirigiu
afavelmente:
- Meu amigo é visitador em função ativa?
- Sim, para servi-lo – respondeu atencioso, o interpelado.
O orientador expôs-lhe, com franqueza e em poucas palavras,
o que desejávamos. Então, o irmão visitador explicou-se razoavelmente:
conhecera Raul, de perto, auxiliara-o muitas vezes, prestando-lhe continuada
assistência espiritual; todavia, não pudera, nem ele e nem outros amigos, evitar-lhe
o suicídio friamente deliberado.
- Suicídio? – interrogou Alexandre, procurando informar-se
de maneira completa, - A viúva acredita em assassínio.
- Entretanto – ponderou o novo amigo -, ele soubera
dissimular com cuidado. Meditara por muito tempo o ato infeliz e, no último
dia, fizera a aquisição d um revólver para o fim desejado. Alvejando a região
do coração, atirou a arma à pequena distância, depois de utilizá-la, cautelosamente,
para evitar as impressões digitais e, desse modo, conseguira burlar a confiança
dos familiares, fazendo-os supor tivesse havido doloroso crime.
- E chegou a vê-lo nos derradeiros minutos da tragédia? –
indagou Alexandre, paternal.
- Sim, esclareceu o interlocutor -, alguns amigos e eu
tentamos socorrê-los, mas, em vista das condições da morte voluntária,
friamente deliberada, não nos foi possível retirá-lo da poça de sangue em que
se mergulhou retido por vibrações pesadíssimas e angustiantes. Permanecíamos em
serviço com o fim de ampará-lo, quando se aproximou um “bando” de algumas
dezenas, que abusou do infeliz e deslocou-o, facilmente, em virtude da harmonia
de forças perversas. Como pode compreender não nos foi possível arrebatá-lo das
mãos dos salteadores da sombra, que o carregaram por aí...
O instrutor parecia satisfeito com as elucidações, e, quando
vi que se dispunha a terminar a palestra, ousei perguntar:
- Mas... E a causa do suicídio? Não será interessante ouvir
o visitador?
- Não – explicou Alexandre, tranquilamente. – Indagaremos do
próprio interessado.
Despedimos-nos. Determinada indagação, todavia,
atormentava-me o cérebro. Não a contive por muitos instantes, dirigindo-me ao
generoso orientador:
- O “bando” a que se refere o informante é a multidão de
entidades delinquentes, dedicadas à prática do mal. Embora tenham influenciação
limitada, em virtude das defesas numerosas que rodeiam os núcleos de nossos
irmãos encarnados e as nossas próprias esferas de ação, levam a efeito muitas
perturbações, concentrando os impulsos de suas forças coletivas.
Porque fosse muito grande a minha estranheza, o instrutor
aduziu;
- Não se surpreenda meu amigo. A morte física não banho
milagroso, que converta maus em bons e ignorantes em sábios, dum instante para
outro. Há desencarnados que se apegam aos ambientes domésticos, à maneira da
hera às paredes. Outros, contudo, e em vultoso número, revoltam-se nos círculos
da ignorância que lhes é própria e constituem as chamadas legiões das trevas,
que afrontaram o próprio Jesus, por intermédio de obsidiados diversos.
Organizam-se diabolicamente, formam cooperativas criminosas e ai daqueles que
se transforma em seus companheiros! Os que caem na senda evolutiva, pelo
descaso das oportunidades divinas, são escravos sofredores desses transitórios,
mas terríveis poderes das sombras, em cativeiro que pode caracterizar-se por
longa duração.
- Mas o visitador regional, como guarda destes sítios – inquiri
espantado -, não poderia defender o suicida infeliz?
- Se ele fosse vítima de assassínio, sim – respondeu o
instrutor – porque, na condição real de vítima, o homem segrega determinadas
correntes de força magnética suscetíveis de pô-lo em contato com os missionários
do auxílio; mas nos suicídio previamente deliberado, sem a intromissão de
inimigos ocultos; como este sob nossa observação, o desequilíbrio da alma é
inexprimível e acarreta absoluta incapacidade de sintonia mental com os
elementos superiores.
- Mas – indaguei assombrado – as sentinelas espirituais não
poderiam socorrer independentemente?
Esboçou Alexandre um gesto de tolerância fraterna e
acentuou:
- Sendo, a liberdade interior apanágio de todos os filhos da
Criação, não seria possível organizar precipitados serviços de socorro para
todos os que caem nos precipícios dos sofrimentos, por ação propositada, com
plena consciência de suas atitudes. Em tais casos, a dor funciona como medida
de auxílio nas corrigendas indispensáveis. Mas... E os maus que parecem felizes
na própria maldade? Perguntará você, naturalmente. Esses são aqueles sofredores
perversos e endurecidos de todos os tempos, que, apesar de reconhecerem a
decadência espiritual de si mesmos, criam perigosa crosta de insensibilidade em
torno do coração. Desesperados e desiludidos, abrigando venenosa revolta,
atiram-se à onda torva do crime, até que um novo raio de luz lhes desabroche no
céu da consciência.
O assunto oferecia ensejo a valiosos esclarecimentos, mas
Alexandre esboçou um gesto de quem não podia gastar muito tempo com palavras e,
depois de ligeiro intervalo, acrescentou:
- André, mantenha-se em oração, ajudando-me por alguns
momentos. Agora, que tenho informações positivas do visitador, preciso
mobilizar minhas possibilidades de visão, sindicando quanto ao paradeiro do
irmão infeliz.
Não obstante conservar-me em prece, observei que o
orientador entrava em profundo silencia. Daí a alguns minutos, Alexandre tomou
a palavra e exclamou como quem estivesse voltando de surpreendente excursão:
- Podemos seguir adiante. O pobre irmão, semi-inconsciente,
permanece imantado a um grupo perigoso de vampiros, em lugarejo próximo.
O instrutor pôs-se a caminho; segui-o, passo a passo, em silencia,
apesar de minha intensa curiosidade. Em pouco tempo, distanciando-nos dos
núcleos suburbanos, encontramo-nos nas vizinhanças de grande matadouro.
Minha surpresa não tinha limites, porque observei a atitude
de vigilância assumida pelo meu orientador, que penetrou firmemente a larga
porta de entrada. Pelas vibrações ambientes, reconheci que o lugar era dos mais
desagradáveis que conhecera, até então, em minha nova fase de esforço
espiritual. Segundo Alexandre de muito perto, via numerosos grupos de entidades
francamente inferiores que se alojavam aqui e ali. Diante do local em que se
processava a matança dos bovinos, percebi um quadro estarrecedor. Grande número
de desencarnados, em lastimáveis condições, atiravam-se aos borbotões de sangue
vivo, como se procurassem beber o líquido em sede devoradora...
Alexandre percebera o assombro doloroso que se apossara de mim e esclareceu-me com serenidade:
- Está observando, André? Estes infelizes irmãos que nos não podem ver, pela deplorável situação de embrutecimentos e inferioridade, estão sugando as forças plasma sanguíneo dos animais. São famintos que causam piedade.
Poucas vezes, em toda a vida, eu experimentara tamanha repugnância. As cenas mais tristes das zonas inferiores que, até ali, pudera observar, não me haviam impressionado com tamanho amargor. Desencarnados à procura de alimentos daquela espécie? Matadouro cheio de entidades perversas? Que significava tudo aquilo? Lembrei meus reduzidos estudos de História, remontando-me à época em que as gerações primitivas ofereciam aos supostos deuses o sangue de touros e cabritos. Estaria ali, naquele quadro horripilante, a representação antiga dos sacrifícios em altares de pedras? Deixei que as primeiras impressões me incandescessem o cérebro, a ponto de sentir, como noutro tempo, que minhas ideias vagueavam em turbilhão.
Alexandre, contudo, solícito como sempre, acercou-se mais carinhosamente de mim e explicou:
- Porque tamanha sensação de pavor meu amigo? Saia de si mesmo, quebre a concha da interpretação pessoal e venha para o campo largo da justificativa. Não visitamos, nós ambos, na esfera da Crosta, os açougues mais diversos? Lembro-me de que em meu antigo lar terrestre havia sempre grande contentamento familiar pela matança dos porcos. A carcaça de carne e gordura significava abundância da cozinha e conforto do estômago. Com o mesmo direto, acercam-se os desencarnados, tão inferiores quanto já o fomos, dos animais mortos, cujo sangue fumegante lhes oferece vigorosos elementos vitais. Sem dúvida, o quadro é lastimável; não nos compete, porém, lavrar as condenações. Cada coisa, cada ser, cada alma, permanece no processo evolutivo que é próprio. E se já passamos pelas estações inferiores, compreendendo como é difícil a melhoria no plano de elevação, devemos guardar a disposição legítima de auxiliar sempre, mobilizando as melhores possibilidades ao nosso alcance, a serviço do próximo.
A advertência for utilíssima. As palavras do instrutor caíram-me n'alma a preceito, retificando-me a atitude mental. Encarei sereno o quadro sob meus olhos e, notando que me reequilibrara, Alexandre mostrou-me uma entidade de aspecto lamentável, semelhante a um autômato, a vaguear em torno dos demais. Depois de fixar-lhe os olhos quase sem expressão, reparei que a sua vestimenta permanecia ensanguentada.
É o suicida que procuramos - exclamou o instrutor, claramente.
- Que? - perguntei, espantado - porque precisariam dele os vampiros?
- Semelhantes infelizes - elucidou Alexandre - abusam de recém-desencarnados sem qualquer defesa, como este pobre Raul, nos primeiros dias que se sucedem à morte física, subtraindo-lhe as forças vitais, depois de lhes explorarem o corpo grosseiro...
Estava atônito, lembrando as antigas informações religiosas sobre as tentações diabólicas, mas o orientador, firme na missão sagrada de auxílio, obtemperou:
- André, não se impressione em sentido negativo. Todo homem, encarnado ou desencarnado, que se desvie da estrada reta do bem, pode vir a ser perigoso gênio do mal. Não temos tempo a perder. Vamos agir, socorrendo desventurado.
Seguindo o prestimoso mentor, aproximei-me também do infeliz. Alexandre alçou a destra sobre a fronte de Raul e envolveu-o em vigoroso influxo magnético. Dentro de poucos instantes, Raul permanecia cercado de luz, que foi vista imediatamente pelos seres da sombra, observando eu que a
a maioria se afastou, lançando gritos de horror, vendo a claridade que rodeava a vítima, estavam lívidos, espantados. Um dos algozes mais corajosos replicou em voz alta:
- Deixemos este homem entregue à sua sorte. Os "espíritos poderosos"estão interessados nele. Larguemos-lo!
Enquanto se retiravam os verdugos, apressadamente, como se temessem algo que u não podia compreender ainda, em face da aproximação bendita daquela luz que vinha do Mais Alto, perdia-me em dolorosas interrogações íntimas. O quadro era típico das velhas lendas de demônios abandonando as almas prisioneiras de seus propósitos infernais. As palavras "espíritos poderosos"haviam sido pronunciadas com indisfarçável ironia. Pela claridade que envolvera o suicida, sabiam eles que estávamos presentes e, embora fugissem, medrosos, alvejavam-nos com zombarias.
Aos poucos, o matadouro de grandes proporções estava deserto de vampiros vorazes. Alexandre, dando por finda a operação magnética, tomou a mão do amigo sofredor, que parecia imbecilizado pela influenciação maligna, e, conduzindo-o para fora, a caminho do campo, falou-me, bondoso:
- Não guarde no coração as palavras irônicas que ouvimos. Esses irmãos desventurados merecem a nossa maior compaixão. Vamos ao que nos possa interessar.
Recomendou-me amparar o novo amigo, que parecia inconsciente de nossa colaboração,e, depois de alguns minutos de marcha, estacionávamos sob árvore frondosa, depondo o irmão enfraquecido e cambaleante sobre a relva fresca, Impressionado com o seu olhar inexpressivo, solicitei os esclarecimentos do orientador, cuja palavra amigo não se fez esperar.
- O pobrezinho permanece temporariamente desmemoriado. O estado dele, depois de tão prolongada sucção de energias vitais, é de lamentável inconsciência.
Em face da minha estranheza, Alexandre acrescentou:
- Que deseja você? Esperaria por aqui o processo de menor esforço? O magnetismo do mal está igualmente cheio de poder, mormente para aqueles que caem voluntariamente sob os seus tentáculos.
Em seguida, inclinou-se paternalmente sobre o desventurado suicida e indagou:
- Irmão Raul, como passa?
- Eu... Eu... Murmurou o infeliz, como se estivesse mergulhado em profundo sono - Não sei... Nada sei,,,
- Lembra-se da esposa?
- Não... - respondeu o suicida, de modo vago.
O instrutor levantou-se e disse-me:
- A inconsciência dele é total. Precisamos despertá-lo.
Em seguida, determinou que eu permanecesse ali, em vigilância, enquanto buscaria recursos necessários.
- Não poderemos acordá-lo por nós mesmos? Interroguei, admirado.
O orientador sorriu e considerou:
- Bem se reconhece que você não é veterano em serviços "intercessórios". Esquece-se de que vamos despertá-lo não só para a consciência própria, senão também para a dor? Romperemos a crosta de magnetismo inferior que o envolve e Raul regressará ao conhecimento da situação que lhe é própria; entretanto, sentirá o martírio do peito varado pelo projétil, rugirá de angústia ao contato da sobrevivência dolorosa, criada, aliás, por ele mesmo. Ora, em tais casos, as primeiras impressões são francamente terríveis e escoam-se algumas hora antes de seguro alivio. E como outras obrigações esperam por nós, ser;a conveniente entregá-lo aos cuidados de outros amigos.
As observações calaram-me fundamente.
Decorridos vinte minutos, aproximadamente, Alexandre voltou acompanhado de dois irmãos que se prontificaram a conduzir o infeliz e, dai a algum tempo, encontrávamos-nos numa casa espiritual e socorro urgente, localizada na própria esfera da Crosta. Via-se que a organização atendia a trabalhos de emergência, porquanto o material de assistência era francamente rudimentar.
Adivinhando-me o pensamente, Alexandre explicou:
- No círculo de vibrações antagônicas dos habitantes da Crosta, não se pode localizar uma instituição completa de auxílio. O trabalho de socorro, desse modo, há de sofrer incontestável deficiência. Esta casa, porém, é um hospital volante que conta com a abnegação de muitos companheiros.
Deposto Raul num leito alvo, o devotado instrutor começou a aplicar-lhe passes magnéticos sobre a região cerebral. Não se passou muito tempo e o infeliz lançou um grito estertoroso e vibrante, dilacerando-me o coração.
- Eu morro! Eu morro!... Gritava Raul, em suprema aflição, tentando, agora, escalar as paredes, - Acudam-me por caridade!
E comprimindo o peito com as mãos, exclamava, em tom lancinante:
- Meu coração está partido! Ajudem-me!... Não quero morrer...
Enfermeiros solícitos amparavam-no com atenção, mas o paciente parecia tomado de horror. Olhos esgazeados em máscara de sofrimento indefinível, continuava gritando estentoricamente, como se houvesse acordado de pesadelo angustioso.
- Éster! Éster!.. - chamou o infeliz, recordando a esposa devotada - Venha em meu auxílio pelo amor de Deus! Socorra-me! Meus filhos!... Meus filhos!...
Alexandre acercou-se dele paternalmente e obtemperou:
- Raul, tenha paciência e fé no Divino Poder! Procure enfrentar corajosamente a situação difícil que você mesmo criou e não invoque o nome da companheira dedicada, nem chame pelos filhos amados que deixou na sua antiga paisagem do mundo, porque a porta material de sua casa se fechou com os seus olhos. Se você tivesse cultivado o amor cristão, prezando as oportunidades que O Senhor lhe confiou, fácil seria, num momento destes, regressar ao ninho afetuosos para rever os entes amados, ainda que eles não conseguissem identificar a sua presença. Mas... Agora, meu amigo, é muito tarde... É necessário aguardar outro ensejo de trabalho e purificação, porque a sua oportunidade, como o nome terrestre de Raul, está finda...
Imenso pavor a estampar-se-lhe no semblante, o interpelado revidou:
- Estarei morto, porventura? Não sinto o coração varado de dor? Não tenho as vestes ensanguentadas? Será isto morrer? Absurdo!...
Muito sereno, o bondoso instrutor voltou a falar:
- Não empunhou sua arma contra o próprio peito? Não localizou o coração para exterminar a própria vida? Ó, meu amigo, podem os homens enganar uns aos outros, mas nenhum de nós poder;a iludir a Justiça Divina.
Revelando extrema vergonha, ao sentir-se descoberto, o suicida prorrompeu em soluços, murmurando:
- Ah! Desventurado que sou! Mil vezes infeliz!...
Alexandre, contudo, não tonou a falar-lhe naquela circunstância. Depois de recomendá-lo carinhosamente aos cuidados dos irmãos responsáveis pelos serviços de assistência, dirigiu-se a mim, explicando:
- Vamos, André! Nosso novo amigo está em crise cula culminância não cederá antes de setenta horas, aproximadamente. Voltaremos mais tarde a vê-lo.
De regresso aos meus trabalhos, esperei, ansioso, o instante de reatar as observações educativas. Impressionava-me a complexidade do serviço "intercessório". As simples orações de uma esposa saudosa e dedicada haviam provocado atividades numerosas para o meu orientador e valiosos esclarecimentos para mim. Como agiria Alexandre na fase final? Que revelação teria Raul para os nossos ouvidos de companheiros interessados no seu bem-esta? Conseguiria a esposa consolar-se nos círculos da viuvez?
Abrigando interrogações numerosas, aguardei o momento azado.
Decorridos quatro dias, o instrutor convidou-me a tornar ao assunto, o que me fez exultar de contentamento pela possibilidade de prosseguir, todavia, mais calmo para sustentar a conversação esclarecedora. Queixava-se da ferida aberta, do coração descontrolado, dos sofrimentos agudos, do grande abatimento. Sabia, porém, que não se encontrava mais no círculo
- Tranquilize-se - disse-lhe o meu orientador, com inexprimível bondade -, sua situação é difícil, mas poderia ser muito pior. Há suicidas que permanecem agarrados aos despojos cadavéricos por tempo indeterminado, assistindo à decomposição orgânica e sentindo o ataque dos vermes vorazes.
- Ai de mim! - suspirou o mísero - porque, além de suicida, sou igualmente criminoso.
E demonstrando infinita confiança em nós, Raul contou a sua história triste, procurando justificar o ato extremo.
Na mocidade, viera do interior para a cidade grande, atendendo ao convite de Noé, eu camarada de infância. Companheiro devotado e sincero, esse amigo apresentara-o, certa vez, à noiva querida, com quem esperava tecer, no futuro, o ninho de ventura doméstica. Aí! Desde o dia, porém, que vira Éster pela primeira vez, nunca mais pôde esquecê-la. Personificava a jovem o que ele, Raul reputava como eu mais alto ideal para o matrimônio feliz. Em sua presença, sentia-se o mais ditoso dos homens. Seu olhar alimentava-lhe o coração, suas ideias constituíam a continuidade dos seus próprios pensamentos. Como, porém, faze-lhe sentir o afeto imenso? Nóe, o bom companheiro do passado, tornara-se-lhe o empecilho que precisava remover. Éster seria incapaz de traição ao compromisso assumido. Noé mostrava-se infinitamente bondoso e estimável para provocar um rompimento. Foi então que lhe nasceu no cérebro a tenebrosa ideia de um crime. Eliminaria o rival. Não cederia sua felicidade a ninguém. O colega deveria morrer. Mas como efetuar o plano sem complicações com a Justiça? Enceguecido pela paixão violenta, passou a estudar minuciosamente a realização de seus criminosos propósitos. E encontrou uma fórmula sutil para a eliminação do companheiro dedicado e fiel. Ele, Raul, passou a usar conhecido e terrível veneno em pequeninas doses, aumentando-as vagarosamente até habituar o organismo com quantidades que para outrem seriam fulminantes. Atingido o padrão de resistência, convidou o companheiro para um jantar e propinou-lhe o veneno odioso em vinho agradável que ele próprio bebeu, sem perigo algum. Noé, porém desaparecera em poucas horas, passando por suicida `apreciação geral. Guardou ele, para sempre, o segredo terrível, e, depois de cortejar gentilmente a noiva choros, conseguiu impor-lhe simpatia, que culminou em casamento. Atingira a realização do que mais desejava: Éster pertencia-lhe na qualidade de mulher; vieram os filhinhos enfeitar-lhe o viver, mas... A sua consciência fora ferida sem remissão. Nas mais íntimas cenas do lar, via Noé, através da tela mental, exprobrando-lhe o precedimento. Os beijos da esposa e as carícias dos filhos n!ao conseguiam afastar a visão implacável. Ao invés de decrescerem, seus remorsos aumentavam sempre. No trabalho, na leitura, na mesa de refeição, na alcova conjugal, permanecia a vítima a contemplá-lo em silêncio. A certa altura do destino, quis entregar-se à justiça do mundo, confessando o crime hediondo; entretanto, não se sentia como direito de perturbar o coração da companheira, nem deveria encher de lodo o futuro dos filhinhos. A sociedade respeitava-o, acatando-lhe o ambiente doméstico. Companheiros distintos de trabalho prezavam-lhe a companhia. Como esclarecer a verdade em semelhantes contingências? Não obstante amar tenazmente a esposa e os filhos, achava-se esgotado, ao fim de prolongar, resistência espiritual. Receava a perturbação, o hospício, o aniquilamento, fugindo 1a confissão do crime que, cada dia, se tornava mais iminente.
A essa altura, a ideia do suicídio tomou vulto em seu cérebro atormentado. Não resistiu por mais tempo. Esconderia o último ato do seu drama silencioso, como ocultara a tragédia primeira. Comprou um revólver e esperou. Certo dia, após o trabalho diário, absteve-se do caminho de volta ao lar e empunhou a arma contra o próprio coração, agindo cautelosamente para evitar as marcas digitais. Atingindo o alvo, num supremo esforço desfizera-se do revólver homicida e não eve a atenção voltada senão para o intraduzível padecimento do tórax estrangulado... Dificilmente, como se os seus olhos permanecessem anuviados, sentiu que algumas pessoas tentavam socorrê-lo e, em seguida, verdadeira multidão de criaturas, que ele pôde ver, arrebatava-o do local de dor... Desde então. um enfraquecimento geral tomara-o por completo. Sentia-se presa de um sono pesado e angustioso, cheio de pesadelos cruéis. E por fim, somente recuperara a consciência de si mesmo, ali naquele quaro modesto, depois de Alexandre restaurar-lhe as energias em prostração...
Terminando a confissão longa e amargurosa, Raul tinha o peito opresso e lágrimas pesadas a lhe lavarem o rosto. Comovidíssimo, não sabia, por minha vez, o que externar. Aquele drama oculto daria para impressionar corações de pedra. Alexandre, contudo, demonstrando a grandeza de suas elevadas experiências, mantinha respeitável serenidade, e falou:
- Nos maiores abismos, Raul, há sempre lugar para a esperança. Não se deixe dominar pela ideia de impossibilidade. Pense na renovação de sua oportunidade, medite na grandeza de Deus. Transforme o remorso em propósito de regeneração.
E após ligeira pausa, enquanto i infeliz se debulhava em pranto, o mentor prosseguiu:
- Em verdade, seus males de agora não podem desaparecer milagrosamente, Todos faremos a colheita compatível com a semeadura, mas também nós, que hoje aprendemos alguma coisa, já passamos, vezes inúmeras, pela lição de recomeçar. Tenha calma e coragem.
Em seguida, Alexandre passou a notificá-lo, relativamente à causa de nosso interesse, explicando-lhe que o trabalho de auxílio fraterno fora iniciado através de orações da esposa carinhosa e desolada. Deus-lhe notícias dela, dos filhinhos e dos velhos tios; falou-lhe das saudades de Éter e de sua ansiedade para vê-lo, ainda que fosse em ligeiro minuto, e ocasião de sono do veículo físico.
Em ouvindo as derradeiras informações, o suicida pareceu reanimar-se vivamente e observou:
- Ai! Não sou digno! Minha miséria acentuar-lhe-ai as dores!...
O orientador, porém, afagando-lhe paternalmente a fronte, prometeu intervir e solucionar o problema.
Retiramo-nos, de novo,e, percebendo-me a profunda admiração, Alexandre ponderou:
- No pequeno drama em observação, meu amigo, você pode calcular a extensão e complexidade de nossas tarefas nos serviços "intercessórios". Os nossos companheiros encarnados pedem-nos, por vezes, determinados trabalhos, muito distantes do conhecimento das verdadeiras situações. Para a sociedade humana, Raul é uma vítima de sicários ocultos, quando é apenas vitima de si mesmo. Para a companheira é o marido ideal, quando foi criminoso e suicida. Compreendi as dificuldades morais em que nos achávamos para atender a petição que nos conduzira ao semelhante serviço/
As palavras do instrutor não evidenciavam outra coisa. Entendendo assim, ousei perguntar:
- Acredita esteja a irmã Éster preparada para o realismo de nossas conclusões?
Alexandre abanou a cabeça, negativamente, e redarguiu:
- Somente são dignos da verdade plena os que se encontrem plenamente libertos das paixões. Éster é profundamente bondosa, mas ainda não alcançou o próprio domínio. Não possui as emoções, antes é possuída por elas. Em vista disso, de modo algum lhe poderíamos dar o conhecimento completo do assunto. Está preparada para a consolação, não para a verdade.
As afirmativas do instrutor chocaram-me de certo modo. De que maneira omitir os pormenores da tragédia? Não seria faltar à realidade? Por que processo confortar a esposa saudosa, ocultando-lhe o sentido verdadeiro dos acontecimentos?
Alexandre, porém, compreendeu-me a indagação e observou:
- Com que direito perturbaríamos o coração de uma pobre viúva na Crosta, a pretexto de sermos verdadeiros? Por que motivo tisnar a esperança tranquila de três crianças adoráveis, envenenando-lhes, talvez, o destino, tão só para nos exibirmos como campeões da realidade? haverá mais alegria em mostrar a sombra do crime, que descobrir a fonte do conforto? André, meu irmão, a vida pede muito discernimento! Cada palavra tem sua ocasião, como cada revelação seu tempo! Não podemos compreender um serviço de socorro com o esmagamento do suplicante. A oração de éster não lhe poderia ser portadora de desalento. Por isso mesmo, nem todos recebem, quando querem, adlegação de Mais Alto para os serviços de assistência.
Registre a observação.
Alexandre percebera o assombro doloroso que se apossara de mim e esclareceu-me com serenidade:
- Está observando, André? Estes infelizes irmãos que nos não podem ver, pela deplorável situação de embrutecimentos e inferioridade, estão sugando as forças plasma sanguíneo dos animais. São famintos que causam piedade.
Poucas vezes, em toda a vida, eu experimentara tamanha repugnância. As cenas mais tristes das zonas inferiores que, até ali, pudera observar, não me haviam impressionado com tamanho amargor. Desencarnados à procura de alimentos daquela espécie? Matadouro cheio de entidades perversas? Que significava tudo aquilo? Lembrei meus reduzidos estudos de História, remontando-me à época em que as gerações primitivas ofereciam aos supostos deuses o sangue de touros e cabritos. Estaria ali, naquele quadro horripilante, a representação antiga dos sacrifícios em altares de pedras? Deixei que as primeiras impressões me incandescessem o cérebro, a ponto de sentir, como noutro tempo, que minhas ideias vagueavam em turbilhão.
Alexandre, contudo, solícito como sempre, acercou-se mais carinhosamente de mim e explicou:
- Porque tamanha sensação de pavor meu amigo? Saia de si mesmo, quebre a concha da interpretação pessoal e venha para o campo largo da justificativa. Não visitamos, nós ambos, na esfera da Crosta, os açougues mais diversos? Lembro-me de que em meu antigo lar terrestre havia sempre grande contentamento familiar pela matança dos porcos. A carcaça de carne e gordura significava abundância da cozinha e conforto do estômago. Com o mesmo direto, acercam-se os desencarnados, tão inferiores quanto já o fomos, dos animais mortos, cujo sangue fumegante lhes oferece vigorosos elementos vitais. Sem dúvida, o quadro é lastimável; não nos compete, porém, lavrar as condenações. Cada coisa, cada ser, cada alma, permanece no processo evolutivo que é próprio. E se já passamos pelas estações inferiores, compreendendo como é difícil a melhoria no plano de elevação, devemos guardar a disposição legítima de auxiliar sempre, mobilizando as melhores possibilidades ao nosso alcance, a serviço do próximo.
A advertência for utilíssima. As palavras do instrutor caíram-me n'alma a preceito, retificando-me a atitude mental. Encarei sereno o quadro sob meus olhos e, notando que me reequilibrara, Alexandre mostrou-me uma entidade de aspecto lamentável, semelhante a um autômato, a vaguear em torno dos demais. Depois de fixar-lhe os olhos quase sem expressão, reparei que a sua vestimenta permanecia ensanguentada.
É o suicida que procuramos - exclamou o instrutor, claramente.
- Que? - perguntei, espantado - porque precisariam dele os vampiros?
- Semelhantes infelizes - elucidou Alexandre - abusam de recém-desencarnados sem qualquer defesa, como este pobre Raul, nos primeiros dias que se sucedem à morte física, subtraindo-lhe as forças vitais, depois de lhes explorarem o corpo grosseiro...
Estava atônito, lembrando as antigas informações religiosas sobre as tentações diabólicas, mas o orientador, firme na missão sagrada de auxílio, obtemperou:
- André, não se impressione em sentido negativo. Todo homem, encarnado ou desencarnado, que se desvie da estrada reta do bem, pode vir a ser perigoso gênio do mal. Não temos tempo a perder. Vamos agir, socorrendo desventurado.
Seguindo o prestimoso mentor, aproximei-me também do infeliz. Alexandre alçou a destra sobre a fronte de Raul e envolveu-o em vigoroso influxo magnético. Dentro de poucos instantes, Raul permanecia cercado de luz, que foi vista imediatamente pelos seres da sombra, observando eu que a
a maioria se afastou, lançando gritos de horror, vendo a claridade que rodeava a vítima, estavam lívidos, espantados. Um dos algozes mais corajosos replicou em voz alta:
- Deixemos este homem entregue à sua sorte. Os "espíritos poderosos"estão interessados nele. Larguemos-lo!
Enquanto se retiravam os verdugos, apressadamente, como se temessem algo que u não podia compreender ainda, em face da aproximação bendita daquela luz que vinha do Mais Alto, perdia-me em dolorosas interrogações íntimas. O quadro era típico das velhas lendas de demônios abandonando as almas prisioneiras de seus propósitos infernais. As palavras "espíritos poderosos"haviam sido pronunciadas com indisfarçável ironia. Pela claridade que envolvera o suicida, sabiam eles que estávamos presentes e, embora fugissem, medrosos, alvejavam-nos com zombarias.
Aos poucos, o matadouro de grandes proporções estava deserto de vampiros vorazes. Alexandre, dando por finda a operação magnética, tomou a mão do amigo sofredor, que parecia imbecilizado pela influenciação maligna, e, conduzindo-o para fora, a caminho do campo, falou-me, bondoso:
- Não guarde no coração as palavras irônicas que ouvimos. Esses irmãos desventurados merecem a nossa maior compaixão. Vamos ao que nos possa interessar.
Recomendou-me amparar o novo amigo, que parecia inconsciente de nossa colaboração,e, depois de alguns minutos de marcha, estacionávamos sob árvore frondosa, depondo o irmão enfraquecido e cambaleante sobre a relva fresca, Impressionado com o seu olhar inexpressivo, solicitei os esclarecimentos do orientador, cuja palavra amigo não se fez esperar.
- O pobrezinho permanece temporariamente desmemoriado. O estado dele, depois de tão prolongada sucção de energias vitais, é de lamentável inconsciência.
Em face da minha estranheza, Alexandre acrescentou:
- Que deseja você? Esperaria por aqui o processo de menor esforço? O magnetismo do mal está igualmente cheio de poder, mormente para aqueles que caem voluntariamente sob os seus tentáculos.
Em seguida, inclinou-se paternalmente sobre o desventurado suicida e indagou:
- Irmão Raul, como passa?
- Eu... Eu... Murmurou o infeliz, como se estivesse mergulhado em profundo sono - Não sei... Nada sei,,,
- Lembra-se da esposa?
- Não... - respondeu o suicida, de modo vago.
O instrutor levantou-se e disse-me:
- A inconsciência dele é total. Precisamos despertá-lo.
Em seguida, determinou que eu permanecesse ali, em vigilância, enquanto buscaria recursos necessários.
- Não poderemos acordá-lo por nós mesmos? Interroguei, admirado.
O orientador sorriu e considerou:
- Bem se reconhece que você não é veterano em serviços "intercessórios". Esquece-se de que vamos despertá-lo não só para a consciência própria, senão também para a dor? Romperemos a crosta de magnetismo inferior que o envolve e Raul regressará ao conhecimento da situação que lhe é própria; entretanto, sentirá o martírio do peito varado pelo projétil, rugirá de angústia ao contato da sobrevivência dolorosa, criada, aliás, por ele mesmo. Ora, em tais casos, as primeiras impressões são francamente terríveis e escoam-se algumas hora antes de seguro alivio. E como outras obrigações esperam por nós, ser;a conveniente entregá-lo aos cuidados de outros amigos.
As observações calaram-me fundamente.
Decorridos vinte minutos, aproximadamente, Alexandre voltou acompanhado de dois irmãos que se prontificaram a conduzir o infeliz e, dai a algum tempo, encontrávamos-nos numa casa espiritual e socorro urgente, localizada na própria esfera da Crosta. Via-se que a organização atendia a trabalhos de emergência, porquanto o material de assistência era francamente rudimentar.
Adivinhando-me o pensamente, Alexandre explicou:
- No círculo de vibrações antagônicas dos habitantes da Crosta, não se pode localizar uma instituição completa de auxílio. O trabalho de socorro, desse modo, há de sofrer incontestável deficiência. Esta casa, porém, é um hospital volante que conta com a abnegação de muitos companheiros.
Deposto Raul num leito alvo, o devotado instrutor começou a aplicar-lhe passes magnéticos sobre a região cerebral. Não se passou muito tempo e o infeliz lançou um grito estertoroso e vibrante, dilacerando-me o coração.
- Eu morro! Eu morro!... Gritava Raul, em suprema aflição, tentando, agora, escalar as paredes, - Acudam-me por caridade!
E comprimindo o peito com as mãos, exclamava, em tom lancinante:
- Meu coração está partido! Ajudem-me!... Não quero morrer...
Enfermeiros solícitos amparavam-no com atenção, mas o paciente parecia tomado de horror. Olhos esgazeados em máscara de sofrimento indefinível, continuava gritando estentoricamente, como se houvesse acordado de pesadelo angustioso.
- Éster! Éster!.. - chamou o infeliz, recordando a esposa devotada - Venha em meu auxílio pelo amor de Deus! Socorra-me! Meus filhos!... Meus filhos!...
Alexandre acercou-se dele paternalmente e obtemperou:
- Raul, tenha paciência e fé no Divino Poder! Procure enfrentar corajosamente a situação difícil que você mesmo criou e não invoque o nome da companheira dedicada, nem chame pelos filhos amados que deixou na sua antiga paisagem do mundo, porque a porta material de sua casa se fechou com os seus olhos. Se você tivesse cultivado o amor cristão, prezando as oportunidades que O Senhor lhe confiou, fácil seria, num momento destes, regressar ao ninho afetuosos para rever os entes amados, ainda que eles não conseguissem identificar a sua presença. Mas... Agora, meu amigo, é muito tarde... É necessário aguardar outro ensejo de trabalho e purificação, porque a sua oportunidade, como o nome terrestre de Raul, está finda...
Imenso pavor a estampar-se-lhe no semblante, o interpelado revidou:
- Estarei morto, porventura? Não sinto o coração varado de dor? Não tenho as vestes ensanguentadas? Será isto morrer? Absurdo!...
Muito sereno, o bondoso instrutor voltou a falar:
- Não empunhou sua arma contra o próprio peito? Não localizou o coração para exterminar a própria vida? Ó, meu amigo, podem os homens enganar uns aos outros, mas nenhum de nós poder;a iludir a Justiça Divina.
Revelando extrema vergonha, ao sentir-se descoberto, o suicida prorrompeu em soluços, murmurando:
- Ah! Desventurado que sou! Mil vezes infeliz!...
Alexandre, contudo, não tonou a falar-lhe naquela circunstância. Depois de recomendá-lo carinhosamente aos cuidados dos irmãos responsáveis pelos serviços de assistência, dirigiu-se a mim, explicando:
- Vamos, André! Nosso novo amigo está em crise cula culminância não cederá antes de setenta horas, aproximadamente. Voltaremos mais tarde a vê-lo.
De regresso aos meus trabalhos, esperei, ansioso, o instante de reatar as observações educativas. Impressionava-me a complexidade do serviço "intercessório". As simples orações de uma esposa saudosa e dedicada haviam provocado atividades numerosas para o meu orientador e valiosos esclarecimentos para mim. Como agiria Alexandre na fase final? Que revelação teria Raul para os nossos ouvidos de companheiros interessados no seu bem-esta? Conseguiria a esposa consolar-se nos círculos da viuvez?
Abrigando interrogações numerosas, aguardei o momento azado.
Decorridos quatro dias, o instrutor convidou-me a tornar ao assunto, o que me fez exultar de contentamento pela possibilidade de prosseguir, todavia, mais calmo para sustentar a conversação esclarecedora. Queixava-se da ferida aberta, do coração descontrolado, dos sofrimentos agudos, do grande abatimento. Sabia, porém, que não se encontrava mais no círculo
- Tranquilize-se - disse-lhe o meu orientador, com inexprimível bondade -, sua situação é difícil, mas poderia ser muito pior. Há suicidas que permanecem agarrados aos despojos cadavéricos por tempo indeterminado, assistindo à decomposição orgânica e sentindo o ataque dos vermes vorazes.
- Ai de mim! - suspirou o mísero - porque, além de suicida, sou igualmente criminoso.
E demonstrando infinita confiança em nós, Raul contou a sua história triste, procurando justificar o ato extremo.
Na mocidade, viera do interior para a cidade grande, atendendo ao convite de Noé, eu camarada de infância. Companheiro devotado e sincero, esse amigo apresentara-o, certa vez, à noiva querida, com quem esperava tecer, no futuro, o ninho de ventura doméstica. Aí! Desde o dia, porém, que vira Éster pela primeira vez, nunca mais pôde esquecê-la. Personificava a jovem o que ele, Raul reputava como eu mais alto ideal para o matrimônio feliz. Em sua presença, sentia-se o mais ditoso dos homens. Seu olhar alimentava-lhe o coração, suas ideias constituíam a continuidade dos seus próprios pensamentos. Como, porém, faze-lhe sentir o afeto imenso? Nóe, o bom companheiro do passado, tornara-se-lhe o empecilho que precisava remover. Éster seria incapaz de traição ao compromisso assumido. Noé mostrava-se infinitamente bondoso e estimável para provocar um rompimento. Foi então que lhe nasceu no cérebro a tenebrosa ideia de um crime. Eliminaria o rival. Não cederia sua felicidade a ninguém. O colega deveria morrer. Mas como efetuar o plano sem complicações com a Justiça? Enceguecido pela paixão violenta, passou a estudar minuciosamente a realização de seus criminosos propósitos. E encontrou uma fórmula sutil para a eliminação do companheiro dedicado e fiel. Ele, Raul, passou a usar conhecido e terrível veneno em pequeninas doses, aumentando-as vagarosamente até habituar o organismo com quantidades que para outrem seriam fulminantes. Atingido o padrão de resistência, convidou o companheiro para um jantar e propinou-lhe o veneno odioso em vinho agradável que ele próprio bebeu, sem perigo algum. Noé, porém desaparecera em poucas horas, passando por suicida `apreciação geral. Guardou ele, para sempre, o segredo terrível, e, depois de cortejar gentilmente a noiva choros, conseguiu impor-lhe simpatia, que culminou em casamento. Atingira a realização do que mais desejava: Éster pertencia-lhe na qualidade de mulher; vieram os filhinhos enfeitar-lhe o viver, mas... A sua consciência fora ferida sem remissão. Nas mais íntimas cenas do lar, via Noé, através da tela mental, exprobrando-lhe o precedimento. Os beijos da esposa e as carícias dos filhos n!ao conseguiam afastar a visão implacável. Ao invés de decrescerem, seus remorsos aumentavam sempre. No trabalho, na leitura, na mesa de refeição, na alcova conjugal, permanecia a vítima a contemplá-lo em silêncio. A certa altura do destino, quis entregar-se à justiça do mundo, confessando o crime hediondo; entretanto, não se sentia como direito de perturbar o coração da companheira, nem deveria encher de lodo o futuro dos filhinhos. A sociedade respeitava-o, acatando-lhe o ambiente doméstico. Companheiros distintos de trabalho prezavam-lhe a companhia. Como esclarecer a verdade em semelhantes contingências? Não obstante amar tenazmente a esposa e os filhos, achava-se esgotado, ao fim de prolongar, resistência espiritual. Receava a perturbação, o hospício, o aniquilamento, fugindo 1a confissão do crime que, cada dia, se tornava mais iminente.
A essa altura, a ideia do suicídio tomou vulto em seu cérebro atormentado. Não resistiu por mais tempo. Esconderia o último ato do seu drama silencioso, como ocultara a tragédia primeira. Comprou um revólver e esperou. Certo dia, após o trabalho diário, absteve-se do caminho de volta ao lar e empunhou a arma contra o próprio coração, agindo cautelosamente para evitar as marcas digitais. Atingindo o alvo, num supremo esforço desfizera-se do revólver homicida e não eve a atenção voltada senão para o intraduzível padecimento do tórax estrangulado... Dificilmente, como se os seus olhos permanecessem anuviados, sentiu que algumas pessoas tentavam socorrê-lo e, em seguida, verdadeira multidão de criaturas, que ele pôde ver, arrebatava-o do local de dor... Desde então. um enfraquecimento geral tomara-o por completo. Sentia-se presa de um sono pesado e angustioso, cheio de pesadelos cruéis. E por fim, somente recuperara a consciência de si mesmo, ali naquele quaro modesto, depois de Alexandre restaurar-lhe as energias em prostração...
Terminando a confissão longa e amargurosa, Raul tinha o peito opresso e lágrimas pesadas a lhe lavarem o rosto. Comovidíssimo, não sabia, por minha vez, o que externar. Aquele drama oculto daria para impressionar corações de pedra. Alexandre, contudo, demonstrando a grandeza de suas elevadas experiências, mantinha respeitável serenidade, e falou:
- Nos maiores abismos, Raul, há sempre lugar para a esperança. Não se deixe dominar pela ideia de impossibilidade. Pense na renovação de sua oportunidade, medite na grandeza de Deus. Transforme o remorso em propósito de regeneração.
E após ligeira pausa, enquanto i infeliz se debulhava em pranto, o mentor prosseguiu:
- Em verdade, seus males de agora não podem desaparecer milagrosamente, Todos faremos a colheita compatível com a semeadura, mas também nós, que hoje aprendemos alguma coisa, já passamos, vezes inúmeras, pela lição de recomeçar. Tenha calma e coragem.
Em seguida, Alexandre passou a notificá-lo, relativamente à causa de nosso interesse, explicando-lhe que o trabalho de auxílio fraterno fora iniciado através de orações da esposa carinhosa e desolada. Deus-lhe notícias dela, dos filhinhos e dos velhos tios; falou-lhe das saudades de Éter e de sua ansiedade para vê-lo, ainda que fosse em ligeiro minuto, e ocasião de sono do veículo físico.
Em ouvindo as derradeiras informações, o suicida pareceu reanimar-se vivamente e observou:
- Ai! Não sou digno! Minha miséria acentuar-lhe-ai as dores!...
O orientador, porém, afagando-lhe paternalmente a fronte, prometeu intervir e solucionar o problema.
Retiramo-nos, de novo,e, percebendo-me a profunda admiração, Alexandre ponderou:
- No pequeno drama em observação, meu amigo, você pode calcular a extensão e complexidade de nossas tarefas nos serviços "intercessórios". Os nossos companheiros encarnados pedem-nos, por vezes, determinados trabalhos, muito distantes do conhecimento das verdadeiras situações. Para a sociedade humana, Raul é uma vítima de sicários ocultos, quando é apenas vitima de si mesmo. Para a companheira é o marido ideal, quando foi criminoso e suicida. Compreendi as dificuldades morais em que nos achávamos para atender a petição que nos conduzira ao semelhante serviço/
As palavras do instrutor não evidenciavam outra coisa. Entendendo assim, ousei perguntar:
- Acredita esteja a irmã Éster preparada para o realismo de nossas conclusões?
Alexandre abanou a cabeça, negativamente, e redarguiu:
- Somente são dignos da verdade plena os que se encontrem plenamente libertos das paixões. Éster é profundamente bondosa, mas ainda não alcançou o próprio domínio. Não possui as emoções, antes é possuída por elas. Em vista disso, de modo algum lhe poderíamos dar o conhecimento completo do assunto. Está preparada para a consolação, não para a verdade.
As afirmativas do instrutor chocaram-me de certo modo. De que maneira omitir os pormenores da tragédia? Não seria faltar à realidade? Por que processo confortar a esposa saudosa, ocultando-lhe o sentido verdadeiro dos acontecimentos?
Alexandre, porém, compreendeu-me a indagação e observou:
- Com que direito perturbaríamos o coração de uma pobre viúva na Crosta, a pretexto de sermos verdadeiros? Por que motivo tisnar a esperança tranquila de três crianças adoráveis, envenenando-lhes, talvez, o destino, tão só para nos exibirmos como campeões da realidade? haverá mais alegria em mostrar a sombra do crime, que descobrir a fonte do conforto? André, meu irmão, a vida pede muito discernimento! Cada palavra tem sua ocasião, como cada revelação seu tempo! Não podemos compreender um serviço de socorro com o esmagamento do suplicante. A oração de éster não lhe poderia ser portadora de desalento. Por isso mesmo, nem todos recebem, quando querem, adlegação de Mais Alto para os serviços de assistência.
Registre a observação.
Neste dia, Alexandre dirigiu-se em minha companhia às
autoridades do Auxílio, pedindo a colaboração de uma das irmãs que funcionavam
nas Turmas de Socorro, para concurso mais eficiente ao coração de Éster. Foi
destacada Romualda, criatura dedicada e bondosa, que desceu para a Crosta,
junto de nós, recebendo, atenciosamente, as recomendações do prestimoso amigo.
Alexandre não se alongou em muitas instruções. Romualda deveria preparar a
viúva, espiritualmente, para visitar, na noite próxima, o esposo desencarnado
e, em seguida, demorar-se junto dela, duas semanas, colaborando no reerguimento
de suas energias psíquicas e cooperando para que se lhe reorganizasse a vida
econômica, através de colocação honesta e digna.
Era de ver-se o carinho que o delicado instrutor dedicou a
todas as providências em curso. Quase no momento aprazado para o reencontro dos
cônjuges, comparecemos ao hospital volante de socorro espiritual, onde o
instrutor cuidou pessoalmente de todas as medidas. Recomendou a Raul o melhor
ânimo, insistindo para que não pronunciasse a menor expressão de queixa e para
que se abstivesse de qualquer gesto que pudesse traduzir impaciência ou
aflição. Em seguida, mandou velar a chaga aberta e sanguinolenta, muito visível
na região dilacerada do organismo perispiritual, para que a esposa não
recebesse qualquer impressão de sofrimento. O próprio Raul, admirado pela lição de boas
maneiras, atendia, satisfeito e reanimado, a todas as instruções. Daí a
minutos, Romualda entrou em companhia de Éster, cujo olhar deixava entrever
angústia e expectação. Alexandre tomou-a pelo braço e mostrou-lhe o companheiro
estendido no leito alvo.
- Raul! Raul! – gritou a viúva desolada, provisoriamente
liberta do corpo carnal, dilacerando-me o coração pelo doloroso tom de voz.
A comoção dela era extrema. Quis prosseguir e não pôde. Dobraram-se
lhe os joelhos e encontrou-se, genuflexa, junto ao leito do esposo, soluçando.
Reparei que os olhos dele permaneciam marejados de pranto que não chegava a
cair.
Alexandre fixava-o, com firmeza, dando-lhe a entender a
necessidade de coragem para o angustioso testemunho. Como a criança interessada
em conhecer as recomendações paternas, o suicida acompanhava os menores gestos
do nosso generoso orientador.
E porque Alexandre lhe fizera ligeiro sinal, Raul tomou a
destra da companheira em lágrimas e falou:
- Não chores mais, Éster! Tem confiança em Deus! Vela pelos
nossos filhinhos e ajuda-me com a tua fé! Vou indo muito bem... Não há razão
para que nos lamentemos! Querida, a morte não é o fim. Aceita a vontade do Pai,
como estou procurando aceitar... Nossa separação é temporária... Nunca te
esquecerei! Estarás em meu coração, onde eu estiver! Também estou saudoso de
tua companhia, de tua dedicação, mas o Altíssimo nos ensinará a transformar
saudades em esperanças!
As palavras do suicida, bem como a doce inflexão de sua voz,
surpreendiam-me as observações. Raul demonstrava um potencial de delicadeza e
finura psicológica, que até aí não revelara a meus olhos. Foi então que,
aguçando a percepção visual, notei que fios tenuíssimos de luz ligavam a fronte
de Alexandre ao cérebro dele e compreendi que o instrutor lhe ministrava
vigoroso influxo magnético, amparando-o na difícil situação.
Ouvindo-lhe as expressões consoladoras, a viúva pareceu
reanimar-se, exclamando, lacrimosa:
- Ó Raul, eu sei que agora estamos separados pelos abismos
da sepultura!... Sei que devo esperar a decisão suprema para unir-me contigo
par sempre... Ouve! Auxilia-me na Terra, na viuvez inesperada e dolorosa!
Levanta-te e vem para a nossa casa, dar-me esperança ao espírito abatido!
Defende-nos ainda contra os maus... Não me deixes sozinha com os nossos
filhinhos, que tanto precisam de ti... Pede a Deus essa graça e vem ajudar-nos
até ao fim!...
Embora continuasse estirado no leito, o interpelado
afagou-lhe carinhosamente os cabelos e respondeu:
- Tem coragem e fé! Lembra-te, Éster, de que existem
padecimentos maiores que os nossos e conforma-te... Vou fortalecer-me e
trabalharei ainda por nós... Assim como me esperas a assistência, esperar-te-ei
a confiança. O Senhor não nos confia problemas dos quais não sejamos dignos!
Volta para nossa casa e alegra-te! Não tenhas medo da necessidade; nunca nos
faltará a bênção do pão! Procura a alegria do trabalho honesto e semeia o bem
através de todas as oportunidades que o mundo te ofereça! A prática do bem dá
saúde ao corpo e alegria ao espírito! E Deus, que é bom e justo, abençoará
nossos filhinhos para que eles sejam felizes ao eu lado... Não te demores mais!
Volta confiante! Guarda a certeza de que eu estou vivo e de que a morte do
corpo é somente a necessária transformação!...
Compreendendo que a oportunidade do reencontro estava a
esgotar-se, revelou a ansiosa esposa extrema curiosidade e aflição, fitando o
companheiro através das lágrimas, e perguntou:
- Raul, antes que me vá, diga-me francamente... Que
aconteceu? Quem te roubou a vida?
Notei que o interpelado mostrou no olhar terrível angústia,
ante a indagação inesperada. Quis, talvez, confessar a verdade, fazer luz em
torno de suas experiências extintas, mas o socorro magnético de Alexandre não
se fez esperado. Jato de intensa luminosidade partiu da mão do orientador, que,
a essa altura da conversação, mantinha sobre a fronte do suicida a destra
protetora.
Transformou-se lhe a expressão fisionômica, restabelecendo-se
lhe a serenidade e a coragem. Novamente calmo Raul falou à companheira:
- Éster, os processos da Justiça Divina não se encontram ao
dispor de nossa apreciação... Guarda contigo a certeza de que estamos sendo
instruídos todos os dias e em todos os acontecimentos... Aprende a procurar,
antes de tudo. À vontade de Deus.
A pobre viúva desejou prolongar a palestra; adivinhava-se
lhe, através dos olhos aflitos, o intenso propósito de continuar bebendo as
sublimes consolações do momento, mas Alexandre tomou-lhe o braço e
recomendou-lhe a necessidade de despedir-se.
A esposa chorosa não relutou. Concentrando toda a sua
capacidade afetiva nas palavras, disse adeus ao suicida e beijou-lhe as mãos
com infinito carinho. Algo distante da organização hospitalar de emergência
confiou-a o instrutor aos cuidados de Romualda e regressou em minha companhia.
Não conseguia ocultar minha enorme admiração por semelhante
serviço de assistência. Alexandre percebeu-me o estado d’alma e falou comovidamente:
- Segundo observa, o trabalho de socorro pede muito esforço
e devotamento fraterno. Não podemos esquecer que Raul e Éster são dois enfermos
espirituais e, nessa condição, requer muita compreensão de nos parte. Felizmente,
a viúva regressa cheia de novo ânimo e o nosso amigo, sentindo a extensão dos
cuidados de que está sendo objeto, e notando por si mesmo quanto pode auxiliar
a companheira encarnada, dar-se-á pressa em criar novas expressões de estímulo
e energia no próprio coração.
Neste dia, Alexandre dirigiu-se em minha companhia às
autoridades do Auxílio, pedindo a colaboração de uma das irmãs que funcionavam
nas Turmas de Socorro, para concurso mais eficiente ao coração de Éster. Foi
destacada Romualda, criatura dedicada e bondosa, que desceu para a Crosta,
junto de nós, recebendo, atenciosamente, as recomendações do prestimoso amigo.
Alexandre não se alongou em muitas instruções. Romualda deveria preparar a
viúva, espiritualmente, para visitar, na noite próxima, o esposo desencarnado
e, em seguida, demorar-se junto dela, duas semanas, colaborando no reerguimento
de suas energias psíquicas e cooperando para que se lhe reorganizasse a vida
econômica, através de colocação honesta e digna.
Era de ver-se o carinho que o delicado instrutor dedicou a
todas as providências em curso. Quase no momento aprazado para o reencontro dos
cônjuges, comparecemos ao hospital volante de socorro espiritual, onde o
instrutor cuidou pessoalmente de todas as medidas. Recomendou a Raul o melhor
ânimo, insistindo para que não pronunciasse a menor expressão de queixa e para
que se abstivesse de qualquer gesto que pudesse traduzir impaciência ou
aflição. Em seguida, mandou velar a chaga aberta e sanguinolenta, muito visível
na região dilacerada do organismo perispiritual, para que a esposa não
recebesse qualquer impressão de sofrimento.
O próprio Raul, admirado pela lição de boas maneiras, atendia,
satisfeito e reanimado, a todas as instruções. Daí a minutos, Romualda entrou
em companhia de Éster, cujo olhar deixava entrever angústia e expectação.
Alexandre tomou-a pelo braço e mostrou-lhe o companheiro estendido no leito
alvo.
- Raul! Raul! – gritou a viúva desolada, provisoriamente
liberta do corpo carnal, dilacerando-me o coração pelo doloroso tom de voz.
A comoção dela era extrema. Quis prosseguir e não pôde. Dobraram-se
lhe os joelhos e encontrou-se, genuflexa, junto ao leito do esposo, soluçando.
Reparei que os olhos dele permaneciam marejados de pranto que não chegava a
cair.
Alexandre fixava-o, com firmeza, dando-lhe a entender a
necessidade de coragem para o angustioso testemunho. Como a criança interessada
em conhecer as recomendações paternas, o suicida acompanhava os menores gestos
do nosso generoso orientador.
E porque Alexandre lhe fizera ligeiro sinal, Raul tomou a
destra da companheira em lágrimas e falou:
- Não chores mais, Éster! Tem confiança em Deus! Vela pelos
nossos filhinhos e ajuda-me com a tua fé! Vou indo muito bem... Não há razão
para que nos lamentemos! Querida, a morte não é o fim. Aceita a vontade do Pai,
como estou procurando aceitar... Nossa separação é temporária... Nunca te
esquecerei! Estarás em meu coração, onde eu estiver! Também estou saudoso de
tua companhia, de tua dedicação, mas o Altíssimo nos ensinará a transformar saudades
em esperanças!
As palavras do suicida, bem como a doce inflexão de sua voz,
surpreendiam-me as observações. Raul demonstrava um potencial de delicadeza e
finura psicológica, que até aí não revelara a meus olhos. Foi então que,
aguçando a percepção visual, notei que fios tenuíssimos de luz ligavam a fronte
de Alexandre ao cérebro dele e compreendi que o instrutor lhe ministrava
vigoroso influxo magnético, amparando-o na difícil situação.
Ouvindo-lhe as expressões consoladoras, a viúva pareceu
reanimar-se, exclamando, lacrimosa:
- Ó Raul, eu sei que agora estamos separados pelos abismos
da sepultura!... Sei que devo esperar a decisão suprema para unir-me contigo
par sempre... Ouve! Auxilia-me na Terra, na viuvez inesperada e dolorosa!
Levanta-te e vem para a nossa casa, dar-me esperança ao espírito abatido!
Defende-nos ainda contra os maus... Não me deixes sozinha com os nossos
filhinhos, que tanto precisam de ti... Pede a Deus essa graça e vem ajudar-nos
até ao fim!...
Embora continuasse estirado no leito, o interpelado
afagou-lhe carinhosamente os cabelos e respondeu:
- Tem coragem e fé! Lembra-te, Éster, de que existem
padecimentos maiores que os nossos e conforma-te... Vou fortalecer-me e
trabalharei ainda por nós... Assim como me esperas a assistência, esperar-te-ei
a confiança. O Senhor não nos confia problemas dos quais não sejamos dignos!
Volta para nossa casa e alegra-te! Não tenhas medo da necessidade; nunca nos
faltará a bênção do pão! Procura a alegria do trabalho honesto e semeia o bem através
de todas as oportunidades que o mundo te ofereça! A prática do bem dá saúde ao
corpo e alegria ao espírito! E Deus, que é bom e justo, abençoará nossos
filhinhos para que eles sejam felizes ao eu lado... Não te demores mais! Volta
confiante! Guarda a certeza de que eu estou vivo e de que a morte do corpo é
somente a necessária transformação!...
Compreendendo que a oportunidade do reencontro estava a
esgotar-se, revelou a ansiosa esposa extrema curiosidade e aflição, fitando o
companheiro através das lágrimas, e perguntou:
- Raul, antes que me vá, diga-me francamente... Que
aconteceu? Quem te roubou a vida?
Notei que o interpelado mostrou no olhar terrível angústia,
ante a indagação inesperada. Quis, talvez, confessar a verdade, fazer luz em
torno de suas experiências extintas, mas o socorro magnético de Alexandre não
se fez esperado. Jato de intensa luminosidade partiu da mão do orientador, que,
a essa altura da conversação, mantinha sobre a fronte do suicida a destra
protetora.
Transformou-se lhe a expressão fisionômica, restabelecendo-se
lhe a serenidade e a coragem. Novamente calmo Raul falou à companheira:
- Éster, os processos da Justiça Divina não se encontram ao
dispor de nossa apreciação... Guarda contigo a certeza de que estamos sendo
instruídos todos os dias e em todos os acontecimentos... Aprende a procurar,
antes de tudo. À vontade de Deus.
A pobre viúva desejou prolongar a palestra; adivinhava-se
lhe, através dos olhos aflitos, o intenso propósito de continuar bebendo as
sublimes consolações do momento, mas Alexandre tomou-lhe o braço e
recomendou-lhe a necessidade de despedir-se.
A esposa chorosa não relutou. Concentrando toda a sua
capacidade afetiva nas palavras, disse adeus ao suicida e beijou-lhe as mãos
com infinito carinho. Algo distante da organização hospitalar de emergência
confiou-a o instrutor aos cuidados de Romualda e regressou em minha companhia.
Não conseguia ocultar minha enorme admiração por semelhante
serviço de assistência. Alexandre percebeu-me o estado d’alma e falou
comovidamente:
- Segundo observa, o trabalho de socorro pede muito esforço
e devotamento fraterno. Não podemos esquecer que Raul e Éster são dois enfermos
espirituais e, nessa condição, requer muita compreensão de nossa parte.
Felizmente, a viúva regressa cheia de novo ânimo e o nosso amigo, sentindo a
extensão dos cuidados de que está sendo objeto, e notando por si mesmo quanto
pode auxiliar a companheira encarnada, dar-se-á pressa em criar novas
expressões de estímulo e energia no próprio coração.
Impressionado, contudo, em vista do dilaceramento havido em
seu organismo espiritual, indaguei:
- E a região ferida? Raul experimentará semelhantes
padecimentos até quando?
- Talvez por muitos anos – respondeu o instrutor, em tom
grave, - Isso, porém, não o impedirá de trabalhar intensamente no campo da
consciência, esforçando-se pela reaproximação da bendita oportunidade
regeneradora.
Outros problemas afloravam-me à ideia. No entanto, o
instrutor precisava ausentar-se, em demanda de incumbências difíceis, nas quais
não poderia eu acompanha-lo. Pedi-lhe permissão para seguir, de perto, o
trabalho de assistência levado a efeito por Romualda, recebendo-lhe a generosa
aprovação. Desejava saber até que ponto se confortara a viúva aflita e
observar-lhe o proveito daquele reencontro, que traduzia elevada concessão.
No dia seguinte, voltei ao lar modesto, justamente por
ocasião do almoço familiar. Romualda andava ativa. O ambiente interno adquirira
novo aspecto. As entidades viciadas não haviam desaparecido totalmente, mas o
seu número fora consideravelmente reduzido. Amparando a sua protegida, a irmã
auxiliadora recebeu-me com amabilidade. Notificou-me que a viúva amanhecera
muito melhor e que ela, Romualda, fizera o possível por manter-lhe a recordação
plena do sonho.
Como era natural, a pobrezinha não poderia lembrar-se de todas
as minúcias; entretanto, fixara as impressões culminantes, suscetíveis de acordar
lhe à divina esperança e restaurar-lhe o bom ânimo. Recomendou-me verificar,
por mim mesmo, o efeito maravilhoso da providência.
De fato, o semblante da viúva ganhava nova expressão. De
olhos límpidos e brilhantes, narrava aos tios e aos filhinhos o sublime sonho
da noite. Todos a escutavam sob forte interesse, mormente as crianças, que
pareciam participar de seu júbilo interior. Éster terminara as narrativas,
emocionada. Observei, então, que a velha tia esboçava um gesto de
incredulidade, perguntando-lhe:
- E você acredita ter visitado Raul no outro mundo?
- Como não? – Redarguiu a viúva, sem pestanejar – Tenho ainda
a impressão de suas mãos sobre as minhas e sei que Deus me concedeu semelhante
graça para que eu readquira minhas forças para o trabalho. Despertei hoje
profundamente reanimada e feliz! Enfrentarei o caminho com novas esperanças!
Esforçar-me-ei vencerei.
- Ó mamãe, como nos consolam as suas palavras! – murmurou um
dos pequenos, de olhos muito vivos – Como desejaria estar com a senhora para
ouvir o papai nesse sonho maravilhoso!...
Nesse instante, o velhinho, que se alimentava em silencia, ponderou
na qualidade de excelente representante da descrença humana:
- É interessante notar que tendo Raul consolado tanto o seu
coração de mulher, nada tenha elucidado sobre o crime que o atirou no sepulcro.
Éster, que sentia a ironia da observação, influenciada pela
benfeitora que ali se mantinha, respondeu prontamente:
- Muitas vezes, meu tio, não sabemos ser gratos às bênçãos
divinas. Recordo-me desta verdade, ao lhe ouvir semelhante raciocínio.
Envergonho-me quando me lembro de haver feito interrogação desta natureza ao
pobre Raul, abatido e pálido no leito. Basta-me a felicidade de tê-lo visto e
ouvido num mundo que eu não posso compreender agora. Tenho a certeza de que o
visitei em algum lugar. Que nos interessa descobrir criminosos, quando não
podemos levantar-lhe o corpo físico? Em nossa preocupação de punir culpados,
sem dar conta de nossas próprias culpas, iremos ao absurdo de desejar ser mais
justos que o próprio Deus?
Calou-se o tio, pensativo, e observei que as crianças
sentiam imensa alegria pela resposta maternal. O coração de Éster penetrava a
zona lúcida e sublime da fé viva, absorvendo paz, alegria e esperança, a
caminho de uma vida nova.
Ao me despedir, felicitei Romualda pelo seu nobre trabalho.
A generosa servidora pôs-me a par de seus projetos de serviço. Permaneceria
mais estreitamente ao lado da viúva, insuflando-lhe coragem e bom ânimo e, na
semana próxima, contava com a possibilidade de cooperar no sentido de organizar
lhe serviço bem remunerado.
Admirei-me, ouvindo o programa principalmente no que tocava
ao auxílio maternal; entretanto, Romualda aduziu muita calma:
- Quando os companheiros terrestres se fazem merecedores,
podemos colaborar em benefícios deles, com todos os recursos ao nosso alcance,
desde que a nossa cooperação não lhes tolha a liberdade de consciência.
Roguei-lhe, então, o obséquio de admitir-me o concurso, no
dia aprazado para os serviços finais. Romualda aquiesceu bondosamente, e, passando
uma semana, fui por ela avisado, quanto à medida de conclusão dos trabalhos de
assistência.
Voltei ao lar da viúva, em companhia da digna servidora espiritual,
que me recomendou:
- Faça o favor de assistir nossa amiga, enquanto vou buscar
a pessoa indicada para auxiliá-la. Já movimentei todas as providências cabíveis
na situação e não temos tempo a perder.
Mantive-me ali, em profunda curiosidade, e decorridas três
hora, aproximadamente, alguém bateu à porta, chamando-me a atenção. Seguida de Romualda,
uma dama distinta vinha ao encontro de Éster, oferecendo-lhe trabalho honesto
em sua oficina de costura.
A viúva chorou de emoção e de alegria, e, enquanto
combinavam determinadas medidas de serviço, num quadro confortador de júbilo
geral, a irmã auxiliadora falou-me, contente:
- Agora, irmão André, podemos voltar tranquilamente. O
serviço que nos foi confiado está concluído, graças ao Senhor.
André Luiz
Cap.11 livro Missionários da Luz - Psicografia de Francisco Cândido Xavier.
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