segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

A RETOMADA DA PUREZA


“Bem-aventurados os que têm limpo o coração, porque verão a Deus”. (Mt, 5:8)

PARA QUE POSSAMOS compreender melhor a presença de Deus no Universo, é preciso que superemos a concepção antropomórfica do patriarca sentado no trono celeste a comandar os anjos, determinando castigos para os maus e oferecendo ao bons a suprema ventura de contemplá-lo, face a face, por toda a eternidade.

Deus é a Mente Criadora, a Consciência Cósmica que construiu o Universo e sustenta a Vida. Estamos mergulhados em seu seio, segundo André Luiz, como peixes num oceano. Tanto mais próximos estaremos dele quanto maior a nossa capacidade de nos ligarmos aos valores espirituais, já que Deus é Espírito e em Espírito deve ser adorado, conforme ensina Jesus.

Os místicos e os santos, cultivando rigorosa disciplina da mente e do sentimento, conseguem sobrepor-se às limitações da matéria e sentem a gloriosa realidade da presença de Deus no Universo, o que os leva experimentar sensações de felicidade e de plenitude de vida tão intensas que são verdadeiros êxtases celestes.

Há em homens assim uma consciência tão ampla de interação, de comunhão profunda com a Natureza, que um Francisco de Assis, plenamente integrado na obra da Criação, via irmãos seus nas aves, nos animais, no mar, no rio, na flor, no fruto, no Sol, na Lua, nas estrelas...

Para encetar-se a jornada rumo a tão elevado estágio de espiritualidade, é preciso ter limpo o coração. Poderíamos definir essa pureza como a ausência de sentimentos inferiores – a cobiça, a luxuria, a maldade, o ódio, o ressentimento, a ambição, o orgulho, a vaidade, o egoísmo...

As crianças, não porque detenham a pureza, mas porque os sentimentos inferiores ainda dormitam em seus corações, são mais espontâneas, mais capazes de uma ligação com os valores espirituais, revelando, não raro, uma surpreendente religiosidade.

Nossas orações, nos verdes anos da infância e no início da adolescência, são mais puras. Sentimos mais de perto a presença dos Espíritos em nos dirigirmos aos benfeitores espirituais com muita naturalidade. Por isso, assimilamos amplamente a proteção do Céu ao surgirem às dificuldades da Terra.

Com a maturidade física e a integração na vida social, com seus problemas, seus interesses, suas disputas despertam no indivíduo as tendências inferiores, herança de desatinos passados. E, após um período de conflitos íntimos, nascidos da luta entre os ideais religiosos não bem definidos a amadurecidos e as paixões humanas, arraigadas e fortes em sua personalidade, ele acaba por acomodar-se às próprias fraquezas.

Surge, então, o tipo comum, esmagadora maioria na Terra: o indivíduo que defende o valor do Bem, mas com facilidade se detém no Mal. Alguém que acredita em princípios morais, mas nem sempre age com moralidade. Se atrelado à religião, temos nele o fariseu, preocupado com as aparências, sem cuidar da essência.

Há um castigo imposto àqueles que se deixam levar pelas tendências puramente humanas. É a perda da tranquilidade, a insatisfação crônica, a angústia existencial, marcadas pela incapacidade de orar, de sentir a presença da Espiritualidade. E a Vida, assim, tornasse um fardo terrivelmente pesado.

No passado, muita gente tentava adquirir pureza para o cultivo da religiosidade autêntica, entregando-se a mortificações não raro caracterizadas por excessos mórbidos. Anacoretas pastavam nos campos, à maneira de animais; outros rolavam nus sobre arbustos espinheiros ou viviam em charcos infestados de serpentes.

Monges de determinadas ordens passavam a existência em sombrios mosteiros, sem jamais pronunciarem uma única palavra.

Certamente, tudo o que puderam aprender nessas desastradas existências foi que ninguém pode encontrar Deus aplicando agressividade contra si mesmo ou fugindo do convívio social.

A retomada da pureza, para o cultivo da fé autêntica, não pode estabelecer-se em clima de isolamento nem de mortificação. Impossível também retomá-la ao nível da ingenuidade ou da simplicidade dos primeiros anos de vida.

Com a doutrina Espírita aprendemos a retomá-la em níveis mais altos e definitivos, em bases de conscientização, seguindo os caminhos do trabalho no campo do Bem e do combate sistemático às nossas tendências inferiores. Neste particular, há muitas perguntas que deveríamos formular diariamente:


Quantas horas por dia estamos dedicando à participação em obras assistenciais?
Quantas vezes por semana temos comparecido ao círculo da oração, no templo de nossa preferência, não para receber, mas para oferecer algo, em termos de participação?
Quais os recursos que estamos mobilizando para ajudar a combater a miséria e o infortúnio que grassam na vida social?
Quantas vezes temos calado diante das ofensas alheias?
Quantas vezes temos perdoado aos que nos criticam?
Quantas vezes temos disciplinado a língua, evitando a maledicência?
Quantas visitas temos feitos a enfermos e necessitados, atendendo suas necessidades imediatas, levando-lhes consolo e esperança?
O que temos feitos para edificar o Bem no mundo? Qual nosso empenho por eliminar o Mal em nós?

Em se tratando de comunhão com Deus, o culto religioso, a reunião mediúnica, o trabalho doutrinário, a leitura do livro espírita são recursos preciosos. Todavia, representam apenas um planejamento. Para sentir a presença de Deus, precisamos muita mais de fazejamento.

Richard Simonetti - Livro a Voz do Monte



domingo, 17 de fevereiro de 2019

SE HOUVESSE MISERICÓRDIA


Bem-aventurados os misericordiosos; porque eles alcançarão misericórdia. (Mt, 5:7)

É DA LEI DIVINA que recebamos da Vida o que lhe oferecemos.
Bens e males praticados reverterão fatalmente em luzes ou sombras em nosso caminho, flores ou espinhos em nossos dias. A cada um – ensina Jesus – segundo suas obras.
Natural, portanto, que, se esperamos por misericórdia, sejamos misericordiosos. Esse é o grande problema, portanto raros se compadecem verdadeiramente das misérias humanas.
Se houvesse misericórdia no mundo, não teríamos tantos e tantos correndo atrás de interesses imediatistas – conforto, riqueza, poderes, prazer, com total despreocupação das angústias alheias. Aquele que se interessa pelo próximo jamais pensará em si enquanto houver gente sofrendo...
Se houvesse misericórdia, não teríamos tanta sobra de alimentos em abastadas mansões nem tanta falta deles em esquecidos casebres...
Se houvesse misericórdia, não existiriam famílias com ricos armários abarrotados de roupas e outras que nem mesmo possuem armários ou roupas para serem guardadas neles...
Se houvesse misericórdia, não haveria gente com a agenda tomada por compromissos sociais e festas, enquanto muitos têm as horas preenchidas por sofrimentos e dores, que os enfrentam terrivelmente solitários, como se morassem num deserto...
Se houvesse misericórdia, não conheceríamos a palavra órfão nem seriam erguidos orfanatos, porquanto para cada criança que perdesse seus pais, outros pais achariam um filho...
Gerações futuras, eleitos que habitarão a Terra após o expurgo final, admirar-se-ão profundamente do descaso, da indiferença do homem atual pela sorte de seu irmão. E perguntarão: “Será que não sabiam? Não teriam noção de que jamais haveria felicidade na Terra, enquanto a legítima fraternidade não estabelecesse a comunhão e todos os filhos de Deus, a fim de que bens e males, compartilhados espontaneamente, tornassem suaves todas às dores e completas todas as alegrias, no caminho da redenção humana?”.
Há uma lição fundamental que ainda não foi devidamente assimilada pela Humanidade. Somente possuímos o que damos.
Apenas o desprendimento de nós mesmos, em doações de trabalho e interesse pelo próximo, acumula valores imperecíveis que rendem felicidade sempre. Não há alegria legítima e duradoura senão aquela que se reflete no sorriso colocado em lábios alheios. Se muita gente transita acabrunhada e triste pela Terra é porque há escassez de misericórdia em seus corações.
Todos temos algo a ver com a confusão do mundo. Numa casa de muitos filhos, onde cada qual esteja vivendo segundo seus próprios interesses, rezando pela cartilha do “cada um por si e o resto que se dane”, teremos, em pouco tempo, um ambiente irrespirável, dominado por conflitos intermináveis, um pequeno inferno para se morar.
Ampliemos essa casa até os limites da Terra e teremos um lar habitado por bilhões de filhos de Deus que ainda não aprenderam a viver como irmãos, fazendo dela a morada da angústia.
A ação individual gera o comportamento coletivo. A soma das tendências dos cidadãos forma a personalidade dos povos. E porque não há misericórdia entre os homens, vemos, no âmbito das nações, a prevalência dos interesses econômicos sobre necessidades essenciais da criatura humana, o domínio exercido por países desenvolvidos sobre nações pobres, as guerras geradas pelas ambições desmedidas, o clima de intranquilidade, e exploração do homem pelo homem.
Sabemos que é preciso mudar esse panorama desolador. Mas como fazê-lo? Condenando o mal? Promovendo revoluções? Oferecendo novas ideias? Nada disso adiantará muito.
Os que vivem anatematizando o Mal acabam envolvidos por ele...
Os que promovem revoluções apoiam-se invariavelmente na violência, desarrumando muito mais do que consertando...
Quanto às ideias, já as temos em demasia no mundo. Faltam aqueles que se disponham a coloca-las em prática. Em verdade, não precisamos de muitas ideias. Apenas uma, fundamental, como roteiro de nosso trabalho pela construção de um mundo melhor, se faz necessariamente indispensável. Jesus, que a retirou do Velho Testamento, diz que ela resume tudo: “O amor a Deus acima de todas as coisas e ao próximo com a nós mesmos.”.
Urge que nos disponhamos a cumprir esse princípio redentor, partindo do pressuposto de que, se não nos compadecermos do próximo, a Vida não se compadecerá de nós.
Cultivando misericórdia, estaremos a caminho do amor, transformando em missionários do Cristo, sempre que estivermos dispostos a estender as mãos ao nosso irmão.
Quando o número de pessoas que procuram viver esse princípio redentor superar os que estão preocupados apenas com a própria sorte, o Reino de Deus começará a ser instalado no mundo.
A voz do Monte – Richard Simonett.