Conflito de Varro no livro Ave Cristo de Emmanuel nos inspira a direção, coragem e fortalecimento na fé.
(...)
- Varro, aceitaste o Evangelho para que Jesus se transforme em teu servidor ou para que te convertas em servidor de Jesus?
- Oh! Sem dúvida – suspirou o rapaz -, se a alguma coisa aspiro no mundo é o ingresso nas fileiras dos escravos do Senhor.
- Então, meu filho, cogitemos dos desígnios do Cristo e olvidemos nossos desejos.
E, fitando o céu pela janela humilde, deixando perceber que solicitava a inspiração do Alto, acrescentou:
- Antes de tudo, não condenes tua mulher. Quem somos nós para sondar o coração do próximo? Poderíamos, acaso, torcer o sentimento de outra alma, usando a maldade e a violência? Quem de nós estará irrepreensível para castigar?
- Todavia, como extinguir o mal, se não nos dispomos a combatê-lo? – ajuizou Varro, gravemente.
O ancião sorriu e considerou:
- Acreditais que possamos vencê-lo à força de palavras bem feitas? Admites, porventura, que o Mestre haja descido das Alturas, simplesmente para falar? Jesus viveu as próprias lições, guerreando as sombras com a luz que irradiava de si mesmo, até ao derradeiro sacrifício. Achamo-nos num mundo envolvido em trevas e não possuímos outras tochas para clareá-lo, senão a nossa alma, que precisamos inflamar no verdadeiro amor. O Evangelho não é somente uma propaganda de ideias libertadoras. Acima de tudo, é a construção dum mundo novo pela edificação moral do novo homem. Até agora, a civilização tem mantido a mulher, nossa mãe e nossa irmã, no nível de mercadoria vulgar. Durante milênios, dela fizemos nossa escrava, vendendo-a, explorando-a, apedrejando-a ou matando-a, sem que as leis nos considerem passíveis de julgamento. Mas, não será ela igualmente um ser humano? Viverá indene de fraquezas iguais às nossas? Porque conferir-lhe tratamento inferior àquele que dispensamos aos cavalos, se dela recebemos a bênção da vida? Em todas as fases do apostolado divino, Jesus dignificou-a, santificando lhe a missão sublime. Recordando-lhe o ensinamento, será lícito repetir – quem de nós, em sã consciência, pode atirar a primeira pedra.
E, fixando significativamente os dois ouvintes, acentuou:
- O Cristianismo, para redimir as criaturas, exige uma vanguarda de espíritos decididos a executar-lhe o plano de ação.
- No entanto – ponderou o jovem romano, algo tímido -, poderemos negar que Cíntia esteja em erro?
- Meu filho, quem ateia fogo ao campo da própria vida, de certo seguirá sob as chamas do incêndio. Compadece-te dos transviados! Não serão suficientemente infelizes por si mesmos?
- E meu filho? – perguntou Varro com a voz embargada de pranto.
- Compreendo-te a aflição.
E, vagueando o olhar lúcido pela sala estreita, Corvino pareceu mostrar um fragmento do próprio coração, acrescentando:
- Noutro tempo, bebi no mesmo cálice. Afastar-me dos filhinhos foi para mim a visitação de terrível angústia. Peregrinei, dilacerado, como folha relegada ao remoinho do vento, mas acabei percebendo que os filhos são de Deus, antes de pousarem docemente em nossas mãos. Entendo-te o infortúnio. Morrer mil vezes, sob qualquer gênero de tortura, é padecimento menor que esse da separação de uma flor viva que desejaríamos reter ao tronco do nosso destino...
- Entretanto – comentou o patrício, amargurado -, não seria justo defender um inocente, reclamando para nós o direito de protegê-lo e educa-lo?
- Quem te ouviria, contudo, a voz, quando uma insignificante ordem imperial poderá sufocar-te os gritos? E além do mais - aduziu o ancião, afetuosamente -, se estamos interessados em servir ao Cristo, como impor a outrem o fel que a luta nos constrange a sorver? A esposa poderá não ter sido generosa para com o teu coração, mas provavelmente será abnegada mão do pequenino. Não será, pois, mais aconselhável aguardar as determinações do Altíssimo, na graça do tempo?
Detendo-se na dolorosa expressão fisionômica do pai desventurado, Corvino observou, depois de longa pausa:
- Não te submetas ao frio do desengano, anulando os próprios recursos. A dor pode ser comparada a volumosa corrente de um rio, suscetível de conduzir-nos à felicidade na terra firme, ou de afogar-nos, quando não sabemos sobrenadar. Ouve-nos, O Evangelho não é apenas um trilho de acesso ao júbilo celestial, depois da morte. É uma luz para a nossa existência neste mundo mesmo, que devemos transformar em Reino de Deus. Não te recordas da visita de Nicodemos ao Divino Mestre, quando o Senhor asseverou convincente: - “importa renascer de novo”?
Ante o sinal afirmativo de Quinto Varro, o ancião continuou:
- Também sofri muito, quando, ainda jovem, me decidi ao trabalho da fé. Repudiado por todos, fui compelido a distanciar-me das Gálias, onde nasci, demorando-me por dez anos consecutivos em Alexandria, onde renovei os meus conhecimentos. A igreja de lá permanece aberta às mais amplas considerações, em torno do destino e do ser. As ideias de Pitágoras são ali mantidas num grande centro de estudos, com real proveito, e, depois de ouvir atenciosamente padres ilustres e adeptos mais esclarecidos, convenci-me de que renascemos muitas vezes, na Terra. O corpo é passageira vestidura de nossa alma que nunca morre. O túmulo é ressurreição. Tornaremos à carne, tantas vezes quantas se fizerem necessárias, até que tenhamos alijado todas as impurezas do íntimo, como o metal nobre que tolera o cadinho purificador, até que arroja para longe dele a escória que o desfigura.
Corvino fez ligeiro intervalo, como a dar oportunidade à reflexão dos ouvintes, e prosseguiu:
- Jesus não falava simplesmente ao homem que passa, mas, acima de tudo, ao espírito imperecível. Em certo passo dos seus sublimes ensinamentos, adverte: “melhor será entrares na vida aleijado que, tendo duas mãos, te aproveitares delas para a descida às regiões inferiores” (1) Refere-se o Cristo ao mundo, como escola em que procuramos o nosso próprio burilamento. Cada qual de nós vem à Terra, com os problemas de que necessita. A provação é remédio salutar. A dificuldade é degrau na grande subida. Nossos antepassados, os druidas, ensinavam que nos achamos num mundo de viagens ou num campo de reiteradas experiências, a fim de que possamos alcançar, mais tarde, os astros da luz divina para sermos um com Deus, nossos Pai. Criamos o sofrimento, desacatando as Leis Universais e suportamo-lo para regressar à harmoniosa comunhão com elas. A justiça é perfeita. Ninguém chora sem necessidade. A pedra suporta a pressão do instrumento que a desgasta, a fim de brilhar, soberana. A fera é conduzida à prisão para domesticar-se. O homem luta e padece para aprender a reaprender, aperfeiçoando-se cada vez mais. A Terra não é o único teatro da vida. Não disse o próprio Senhor – a quem pretendermos servir – que “existem muitas moradas na Casa de Nosso Pai”? O trabalho é a escada luminosa para outras esferas, onde nos reencontramos, como pássaros que, depois de se perderem uns dos outros, sob as rajadas do inverno, se reagrupam de novo ao sol abençoado da primavera...
Passando a mão pelos cabelos brancos, o velho acentuou:
- Tenho a cabeça tocada pela neve do desencanto... Muitas vezes, a agonia me visitou a alma cheia de sonhos... Em torno de meus pés, a terra fria me solicita o corpo alquebrado, mas dentro do meu coração a esperança é um sol que me abrasa, revelando em suas projeções resplendentes o glorioso caminho do futuro... Somos eternos, Varro! Amanhã, reunir-nos-emos, felizes, no lar da eternidade, sem o pranto da separação ou da morte...
Ouvindo aquelas palavras, repletas de convicção e de ternura, o moço patrício aquietou o espírito atormentado.
(...)
Emmanuel
Trecho do livro Ave Cristo
(1) Evangelho de Marcos, cap 9 vers 43 (nota do Autor espiritual)
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