Uma fábula para quem busca a Trilha da Verdade ROBERT FISHER
3- O CAMINHO DA VERDADE
Quando o cavaleiro acordou, Merlin estava sentado silenciosa- mente ao seu lado.
Desculpe por ter agido de maneira tão pouco gentil — disse o cavaleiro, — Minha barba ficou toda encharcada — ele acrescentou desgostoso.
Não precisa se desculpar — disse Merlin. — Você acaba de dar o primeiro passo para sair dessa armadura.
O que você quer dizer?
Você verá — replicou o mago. Em seguida, levantou-se. — Está na hora de você partir.
Isso deixou o cavaleiro perturbado. Ele estava gostando da vida na floresta com Merlin e os animais. Além disso, parecia não ter nenhum lugar para ir. Juliet e Christopher aparentemente não queriam que ele voltasse para casa. E verdade que poderia retomar as atividades de cavaleiro e participar de algumas cruzadas. Ele tinha uma boa reputação, e havia diversos soberanos que ficariam felizes em tê-lo do seu lado, mas lutar parecia não ter mais propósito algum.
Merlin lembrou o cavaleiro de seu novo propósito: livrar-se da ar- madura.
Por que me importar? — perguntou o cavaleiro morosamente. — Para Juliet e Christopher não faz diferença se eu retirar ou não esta armadura.
Pense em você mesmo — sugeriu Merlin. — Ter ficado preso em todo esse aço lhe causou um monte de problemas, e sua situação só irá
piorar com o passar do tempo. Você pode até vir a morrer de algo como uma pneumonia decorrente de uma barba encharcada.
Acho que minha armadura se tornou um estorvo — replicou o cavaleiro. — Estou cansado de arrastá-la de um lado para o outro, e não aguento mais comer purê de comida. Por falar nisso, não consigo nem cocar minhas costas quando tenho vontade.
E faz quanto tempo desde que você sentiu pela última vez o calor de um beijo, a fragrância de uma flor, ou ouviu o som de uma melodia bonita, sem que essa armadura se interpusesse no caminho?
Nem me lembro — resmungou o cavaleiro, tristemente. — Você está certo, Merlin. Tenho de retirar esta armadura para mim mesmo.
Você não pode continuar a viver e a pensar como fazia no passado — continuou Merlin. — Essa é a principal razão por que ficou encarcerado nessa prisão de aço.
Mas como conseguirei mudar tudo isso? — perguntou o cavaleiro, inquieto.
Não é tão difícil como pode parecer — Merlin explicou, conduzindo o cavaleiro até uma trilha. — Este foi o caminho que você percorreu para chegar a esta floresta.
Não percorri nenhum caminho — disse o cavaleiro. — Estive perdido durante meses!
E comum as pessoas não terem consciência do caminho que estão seguindo — replicou Merlin.
Você quer dizer que este caminho estava aqui, mas eu não conse- guia vê-lo?
Sim, e você pode voltar por ele, se quiser, mas ele conduz à desonestidade, ganância, ódio, ciúme, medo e ignorância.
Você está dizendo que eu sou todas essas coisas? — o cavaleiro perguntou, indignado.
As vezes, você é alguma delas — Merlin admitiu, sossegadamente.
O mago então apontou para outra trilha. Ela era mais estreita que a primeira e bastante íngreme.
Parece uma subida e tanto — observou o cavaleiro.
Merlin concordou com a cabeça: Este — ele disse — é o Caminho da Verdade. Ele torna-se mais íngreme à medida que se aproxima do cume de uma montanha que fica lá longe.
O cavaleiro olhou para aquela trilha escarpada, sem entusiasmo. Não sei se vale a pena. O que vou ganhar quando atingir o topo?
É o que você vai perder — Merlin explicou. — A armadura!
O cavaleiro ponderou sobre isso. Se retornasse pelo caminho que tinha percorrido antes, não havia esperança de remover a armadura, e ele provavelmente morreria de solidão e fadiga. Parecia que a única ma- neira de se livrar da armadura era seguir pelo Caminho da Verdade, mas assim ele poderia morrer, tentando escalar aquela encosta tão íngreme. O cavaleiro olhou para o difícil caminho à frente. Depois olhou para o aço que cobria seu corpo.
Está bem — ele disse resignado. — Tentarei o Caminho da Verdade.
Merlin gostou. A decisão de seguir por uma trilha desconhecida com essa armadura pesada atravancando o seu caminho requer muita coragem — destacou o mago.
O cavaleiro sabia que era melhor começar imediatamente ou pode- ria mudar de idéia.
Vou pegar o meu fiel cavalo — ele disse.
Oh, não — disse Merlin, balançando a cabeça. — Há trechos no caminho que são estreitos demais para um cavalo passar. Você terá de ir a pé.
Perplexo, o cavaleiro se estatelou sobre uma pedra.
Acho que prefiro morrer com a barba encharcada — ele disse, com sua coragem esvanecendo rapidamente.
Você não viajará sozinho — Merlin lhe disse. — Esquilo o acompanhará
O que você espera que eu faça, que monte nas costas do esquilo? — perguntou o cavaleiro, temendo o pensamento de fazer aquela árdua viagem com um animal de fala esperta.
Talvez você não possa montar sobre mim — disse Esquilo —, mas vai precisar de mim para ajudá-lo a comer. Quem mais vai mastigar nozes para você e empurrá-las através da viseira?
Rebecca, que ouvira a conversa de uma árvore próxima, sobrevoou o cavaleiro e pousou no seu ombro.- Também vou com você. Já estive no topo da montanha e sei o caminho — ela disse.
A disposição dos dois animais em ajudar conferiu ao cavaleiro a coragem de que ele necessitava.
"Bem, não é incrível", ele disse a si mesmo, "um dos cavaleiros de elite do reino precisando ser encorajado por um esquilo e um pássaro!"
Ele fez um esforço para ficar em pé, sinalizando a Merlin que estava pronto para começar sua viagem. Enquanto caminhavam em direção à trilha, o mago pegou uma estranha chave dourada que estava em seu pescoço e entregou-a ao cavaleiro. - Esta chave abrirá as portas dos três castelos que bloquearão seu caminho.
Eu sei — gritou o cavaleiro impulsivamente. — Haverá uma princesa em cada castelo, e eu matarei o dragão que a mantém cativa e a salvarei...
Basta! — interrompeu Merlin. — Não haverá princesas em nenhum desses castelos. Mesmo se houvesse, você agora não tem a menor con- dição de resgatar quem quer que seja. Você tem de aprender a se salvar primeiro.
Repreendido dessa forma, o cavaleiro calou-se e Merlin continuou: — O primeiro castelo chama-se Silêncio; o segundo, Conhecimento; e o terceiro, Vontade e Ousadia. Depois de entrar neles, você encontrará a saída somente depois de ter aprendido o que está lá para você aprender.
Do ponto de vista do cavaleiro, isso não parecia ter graça alguma compara- do com o salvamento de princesas. Além disso, no momento, visitas a castelos realmente não o atraíam muito.
Por que não posso simplesmente contornar os castelos? — ele perguntou, amuado.
Se fizer isso, você se extraviará do caminho e com certeza se perderá. O único meio de chegar ao topo da montanha é atravessando esses caste- los — Merlin disse com firmeza.
O cavaleiro suspirou profundamente, enquanto mantinha o olhar fixo na trilha estreita e íngreme à sua frente. Ela desaparecia entre altas árvores que se destacavam contra um agrupamento de nuvens baixas. Pressentiu que essa jornada seria muito mais difícil do que uma cruzada.
Merlin sabia o que o cavaleiro estava pensando.
Sim — ele concordou —, há uma outra batalha a ser travada no Caminho da Verdade. A luta será aprender a amar a si mesmo.
Como farei isso? — perguntou o cavaleiro.
Para começar, você tem de aprender a se conhecer — respondeu Merlin. — Essa batalha não pode ser vencida com sua espada, portanto você pode deixá-la aqui.
O olhar gentil de Merlin pousou sobre o cavaleiro por um instante. Depois ele acrescentou:
Se você encontrar algo com que não consiga lidar, basta me chamar que eu irei.
Você quer dizer que pode aparecer em qualquer lugar que eu este- ja?
Qualquer mago que se respeita pode fazer isso — Merlin respondeu e, em seguida, desapareceu.
O cavaleiro estava assombrado: Ora... ora, ele sumiu!
Esquilo concordou: Algumas vezes ele faz realmente coisas do arco da velha!
Vocês vão desperdiçar toda a energia falando — Rebecca os repre- endeu. — Vamos em frente.
O elmo do cavaleiro rangeu, enquanto ele assentia com a cabeça. Eles começaram a marcha com Esquilo na frente e o cavaleiro, com Rebecca no ombro, atrás. De tempos em tempos, Rebecca voava em missão de reconhecimento e voltava para relatar o que vira.
Após algumas horas, o cavaleiro desmoronou, exausto e dolorido. Não estava acostumado a viajar de armadura sem estar montado no cavalo. Como já estava quase escuro, Rebecca e Esquilo decidiram que poderiam parar ali para passar a noite.
Rebecca voou entre os arbustos e voltou com alguns frutos, que empurrou através dos orifícios da viseira do cavaleiro. Esquilo foi até um riacho próximo e encheu algumas cascas de nozes com água, que o cavaleiro bebeu por meio do canudo que Merlin lhe dera. Cansado demais para permanecer acordado e esperar as nozes que Esquilo ainda preparava, o cavaleiro adormeceu.
Ele foi acordado na manhã seguinte pelo brilho do sol nos seus olhos. Desacostumado com o clarão, ele semicerrou os olhos. Nunca antes sua viseira havia permitido a passagem de tanta luz. Tentava compreender esse fenômeno, quando percebeu que Rebecca e Esquilo olhavam para ele, tagarelando e murmurando, excitados. Empurrando o corpo até uma posição sentada, subitamente se deu conta de que conseguia ver mais do que no dia anterior, e podia sentir o frescor do ar de encontro ao seu rosto. Parte da viseira havia rompido e caíra! "Como isso aconteceu?", ele ficou pensando.
Esquilo respondeu à sua pergunta não verbalizada. Esse pedaço enferrujou e se desprendeu.
Mas como? — perguntou o cavaleiro.
Por causa das lágrimas do seu pranto, depois que você viu a carta em branco de seu filho.
O cavaleiro refletiu sobre isso. A tristeza que ele sentira fora tão profunda que a armadura não pudera protegê-lo dela. Muito pelo contrário, suas lágrimas haviam começado a romper o aço que o circundava. - E isso! — ele exclamou. — Lágrimas de sentimentos reais me libertarão desta armadura! Ele colocou-se em pé tão rápido como há muitos anos não fazia. - Esquilo! Rebecca! — ele gritou. — É realidade! Vamos seguir o Caminho da Verdade!
Rebecca e Esquilo estavam tão deleitados com o que estava ocor- rendo ao cavaleiro, que nenhum deles mencionou que aquela rima tinha sido terrível.
Os três continuaram montanha acima. Era um dia especial para o cavaleiro. Ele percebia as minúsculas partículas iluminadas de sol que se filtravam através dos galhos das árvores. Olhou de perto o rosto de alguns tordos e viu que não eram todos iguais. Ele falou isso para Rebecca, que não parava de dar saltos, murmurando alegremente.
Você está começando a perceber as diferenças em outras formas de vida, porque está começando a perceber as diferenças no seu interior.
O cavaleiro tentou entender o que exatamente Rebecca queria di- zer com isso. Mas era orgulhoso demais para perguntar, pois ainda pen- sava que um cavaleiro deveria ser mais inteligente que um pombo.
Nesse exato momento, Esquilo, que fora fazer um reconhecimento da estrada mais adiante, voltava numa carreira. - O Castelo do Silêncio fica logo depois da próxima subida.
Excitado com a perspectiva de ver o castelo, o cavaleiro seguiu ainda mais rápido. Quando alcançou o alto da colina já estava quase sem ar. Era verdade, um castelo emergia à frente, bloqueando completamente o caminho. O cavaleiro confessou a Esquilo e Rebecca que estava desapontado. Ele esperava uma extravagante estrutura. Em vez disso, o Castelo do Silêncio parecia com qualquer outro castelo da região.
Rebecca riu e disse: Quando você aprender a aceitar em vez de ter expectativas, seus desapontamentos serão menores.
O cavaleiro acenou com a cabeça, sinalizando que concordava com a sabedoria contida nessas palavras.
Passei a maior parte de minha vida sofrendo desapontamentos. Lembro-me de estar deitado no berço pensando que era o bebê mais bonito do mundo. Então a minha governanta olhou para mim e disse que eu tinha um rosto que somente uma mãe poderia amar. Acabei desapon- tado comigo por ser feio ao invés de bonito e desapontado com a gover- nanta por ela ser tão rude.
Se tivesse aceitado verdadeiramente que era bonito, o que ela disse não teria tido importância. Você não ficaria desapontado — Esquilo ex- plicou.
Isso fazia sentido para o cavaleiro. Estou começando a achar que os animais são mais inteligentes do que os homens.
O fato de poder dizer isso faz de você um ser tão inteligente quanto nós — Esquilo replicou.
Não acho que isso tenha a ver com ser inteligente — disse Rebecca. — Os animais aceitam e os seres humanos têm expectativas. Você nunca ouvirá um coelho dizer "Espero que o sol apareça de manhã para eu poder ir até o lago brincar". Se o sol não aparecer, isso não estragará o dia do coelho. Ele simplesmente é feliz sendo um coelho.
O cavaleiro refletiu sobre isso. Ele não conseguia se lembrar de muitas pessoas que eram felizes simplesmente sendo pessoas.
Logo chegaram à porta de um imenso castelo. O cavaleiro tirou a chave dourada do pescoço e encaixou-a na fechadura. Enquanto abria a porta, Rebecca sussurrou: - Nós não vamos entrar com você.
O cavaleiro que estava aprendendo a amar e a confiar nos dois animais ficou mais uma vez desapontado, já que eles não iriam acompanhá-lo. Ele quase mencionou isso, mas se conteve a tempo. Novamente, estava tendo expectativas.
Os animais sabiam que o cavaleiro hesitava em entrar no castelo. - Podemos levá-lo até a porta — disse Esquilo —, mas você tem de entrar sozinho.
Quando Rebecca saiu voando, ela bradou para incentivá-lo: Nós o encontraremos do outro lado.