sábado, 1 de outubro de 2016

Serenidade



Um barco deslizava, ao cair da tarde, nas águas do Lago de Genesaré. Dentro dele, via-se, além do mestiço musculosos que se servia de duas pás à feição de remos, um homem de pequena estatura, envolto em  profunda meditação, sem perceber a participação da natureza que tanto admirava, devido ao seu estado de emotividade espiritual naquele momento. Tal estado o levava a difíceis reajustes nos conceitos que esposara com a vivência de muitos anos como imediato dos rabinos da Galileia e muita convivência com os de Jerusalém. Várias vezes ministrara ensinamentos nas sinagogas, inspirado nos escritos de Moisés, o chefe espiritual dos judeus. Tiago queria e deveria ser, mais tarde, um dos sacerdotes. No entanto, o destino lhe reservara outro apostolado mais propício, pois a vida nem sempre nos atende nas linhas das nossas aspirações, por não sabermos com exata medida o que mais nos convém. Tiago se debatia nas suas conversações mais amplas com os profitentes da fé que esposara desde o berço. Pela sinceridade, pela confiança nos postulados que abraçara em nome do Pai Celestial, a fidelidade era o seu maior empenho dentro da comunidade espiritual. E enquanto os remos agitavam o barco em direção à praia, o filho de José estava, de um certo modo, agitado. No seu coração, o raciocínio o levava ao tribunal da consciência, acusando-o de traição à religião que o vira nascer. Não obstante, os sentimentos avançavam no meio do tumulto, dizendo que Jesus era o Cristo que havia de vir e as deduções se debatiam no topo do seu volumoso crânio. Não fora Moisés, o maior profeta de todos os tempos, que anunciara também a vinda do Messias?

O homem de Deus tornava-se dois dentro daquela humilde embarcação, dividido pela angustiosa dúvida. De qualquer forma, ia em direção à reunião memorável daquela noite. Sua atração por Jesus era de confundir todos os  raciocínios. Perdeu, naquele instante, toda a serenidade que acreditava ter. Pelo menos, escapou-lhe todo o raciocínio emocional que a sua posição exigia, tornando-o um homem comum como não pretendia ser.

Desce do barco quase sem perceber. Seus pés se afundam na tapete arenoso, deixando as marcas das sandálias simples que lhe serviam para as grandes caminhadas, sem esquecer o cajado que marcava a sua posição espiritual no reino do entendimento dos antigos pergaminhos. Tiago apressa o passo pela disciplina que a autoeducação, lhe conferiu, querendo ser o primeiro a chegar como participante de assembleia. 

Destarte, não percebeu, no lusco-fusco, um personagem esguio e sorridente, a contemplar o lago majestoso que refletia os primeiros clarões da lua. A mão de João toca seu ombro de leve, saudando-o com benevolência:

- A paz seja contigo, Tiago!

Assusta-se, porém, sem desequilíbrio e, reconhecendo o companheiro, responde:

- Que Deus te ilumine, meu irmão! Quais os ventos que te trouxeram aqui João?

Este, ainda sorrindo, adianta:

- É a ânsia pela natureza, pois nela vejo e sinto o Criador com mais eficiência. Queria, antes de encontrarmos o Divino Mestre, preparar as minhas emoções para melhor interpretar a sua grandiosa fala, e escolhi esse ambiente que tanto me fascina. E, ainda mais, o Senhor me premiou com a tua figura.
Sorriram juntos e, abraçados, sem palavras, agradecem a Deus.

Em poucos instantes, João e Tiago avistaram, adentrando o casarão, alguns discípulos e a figura majestosa do rabino incomparável da Galiléia. Em seguida, os dois companheiros de Jesus também se assentaram, pelo prazer de participar daquele convívio que ficaria inesquecível em seus corações.

Ambiente sereno, onde o respeito se transmutava em alegria e esperança. Tiago, no silêncio, pedia aos céus que lhe favorecessem a oportunidade de perguntar e que o diálogo lhe fosse favorável, sem que o acanhamento ou mesmo a ignorância abafasse o que lhe ia na alma. Sabia um pouco das leis, mas queria saber mais, tinha fome de um entendimento mais vasto acerca da vida e as forças que nos dirigem na existência.

O velho discípulo ostentava uma bagagem cultural apreciável. Conhecedor de várias línguas dominava completamente o grego, pois a filosofia e o espiritualismo em geral alcançaram, na Grécia, alta posição em relação ao resto do cenário do mundo.

Jesus, no toco de cedro, perpassa seus brilhantes olhos por toda a assembleia parando, de mansinho, nos inquietos  olhos de Tiago, como dizendo: “Fala, meu filho, fala! O que queres que eu ouça?” E o antigo pregador das sinagogas descontrai seu coração entendendo que chegara a vez de expor ao Mestre suas dúvidas acerca da brandura. Levanta-se com deferência, a locução em pouco trêmula:

- Senhor, podes nos dizer alguma coisa sobre a Serenidade? Às vezes  ela se torna o clima do meu íntimo nas horas de afazeres espirituais e materiais. Todavia, em dado momento, é qual o peixe que seguramos nas mãos um tanto frouxas, escapulindo. Esse clima d’alma deve ser trabalhado somente por dentro ou o nosso orgulho não nos deixa receber as experiências dos outros? O que devo fazer para que a Serenidade faça parte de mim com meus olhos, meus pés, minhas mãos, minha cabeça, enfim, como todo o meu corpo?

A expectativa era geral! Jesus ouviu pacientemente a pergunta, deu um tempo para que todos se acalmassem e expôs, com interesse:

- Tiago, a Serenidade de que queres ser portador é tesouro dos anjos que receberam-na das mãos do tempo, pelos impulsos de milênios incontáveis, sob as bênçãos de Deus. Entretanto, esse tempo somente age quando abrimos nossos corações pela boa vontade, onde o esforço próprio nunca falta. E os milênios são como o calor divino que somente amadurece e harmoniza o universo interior quando nos dispomos a respeitar e viver os princípios das leis que nos governam a todos. E as bênçãos de Deus são a execução da melodia celestial que se irradia pela vivência da Serenidade imperturbável.

Parou por momentos, para que todos respirassem, serenamente aliviados. Para Tiago, que já convivia com altos conceitos filosóficos, não foi difícil degustar o manjar dos céus, que se fundamentavam na evolução das almas, tema que, de leve, sentia nas suas mais profundas deduções. No entanto, precisava de algo mais que lhe acalmassem o mundo mental.

O Mestre torna a fitar Tiago e prossegue, com desembaraço.

- Tiago, a mansuetude imperturbável, no seio dos homens, parece-nos muito difícil, pela largueza de ignorância que ainda alimentam sob todos os aspectos da vida; mas não é impossível de ser adquirida. No perpassar dos anos e séculos, sem que a interrupção do bem se faça, ela passa a fazer parte do teu corpo físico e espiritual. A lei te impõe uma condição: que cada dia coloques no teu alforje um grãozinho de areia de auto aprimoramento, de autoeducação, de amor sem descanso, de fé revestida de obras, para que, no amanhã da eternidade, possas sentir o nascimento, dentro e fora de ti, esqueças que, desde quando deres os primeiros passos com sinceridade e confiança, começarás a viver e a sentir a felicidade oriunda dos primeiros raios da equidade espiritual. A bondade de Deus é tão grande que mandou a mensagem da salvação quase ao vivo, para que possas sentir a sua paternidade e acreditar no amor que se estenderá de uns para com os outros.

O Divino Mestre cerra os lábios e parece meditar. Envolvendo seu imponente corpo, via-se como um manto de luz, do qual partiam fragmentos em todas as direções. Ao tocar nos corpos dos discípulos, fosforesciam, alojando-se em seus corações. O Cristo, tranquilo e confiante, prossegue sem cansaço:

- Tiago, uma árvore, para se manter de pé no solo que lhe dá a vida, estica suas raízes em todas as direções da terra, e os seus galhos obedecem ao mesmo esquema, no ar, para que, no centro, se avolume seu corpo ciclópico, com segurança. Pois assim é a serenidade de que falas  e sobre a qual estamos dialogando. Não pode ser fruto somente de dentro de cada alma, como não deve ser escorço somente de fora. O que te garante a brandura inalterável nos escaninhos do teu ser é o amor de Deus, que parte de dentro de nós em busca da sua manifestação para fora e que vem de fora para que se manifeste dentro das criaturas. 

Enquanto somos tomados pela insegurança, e qual a árvore mirrada que não pode demonstrar seus frutos como valores por gratidão ao agricultor que a adubou durante o seu crescimento. Se intentas que cresça a árvore da serenidade em ti, começa cultivando-a sem cansaço, aduba os ideais elevados e trabalha pela paz, tua e dos outros. Sê benevolente com o próximo e não esqueças a caridade, onde passar. Serve sem interrogação e ama indistintamente.

A voz de Jesus serenou, em um ritmo de sinfonia, João e Tiago, que entraram juntos no casarão, saíram em conversação interminável acerca da lição da noite, desenvolvida pelo Mestre. Os outros discípulos, empolgados de esperança, desenvolviam igualmente seus ideais para a pregação do Evangelho. E, como por encanto, não viram mais, naquela noite, o Cristo. Ninguém comentou o fato, por já ser costume o Senhor se tornar invisível. Uma multidão incalculável tornava difícil a saída com naturalidade.

As estrelas festejavam a madrugada como olhos de luz presenciando os fatos terrenos.
Tiago, renovado nos conceitos da serenidade com fruto da evolução, ergue as vistas para os astros  e agradece a Deus pela oportunidade de aprender com Jesus.

Texto extraído do livro Ave Luz – João Nunes  Maia pelo espírito de Shaolin


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